E à terceira tentativa com Blood From a Stone, depois dos sobreexcelentes Little Things e Rykestrasse 68, Hanne Hukkelberg consegue criar, com o aperfeiçoamento de todas as experiências de laboratório usadas nas gravações anteriores, a obra de arte completa. Uma radiografia assombrosa do mundo actual em que vivemos enlaça-nos perigosamente rumo a uma atmosfera de pesadelo, perturbação, estranheza e revelação.
Textos quase telegráficos - mas com substância - resumem emoções (humanas?) escondidas atrás de máscaras, ora invadidas pelo medo ora pela dor ou pela dificuldade de relacionamento, e adivinham os seres vagamente estranhos que somos. Histórias de um mundo misterioso e fascinante como se de pura ficção científica se tratasse.
Mas o que mais nos espanta é o absoluto domínio que Hanne Hukkelberg exerce sobre a matéria musical, criando uma complexa mas francamente acessível teia sonora. Contactos imediatos com os A.R.Kane de Sixty Nine, um baixo ligado à tomada que acompanha, literalmente, a batida do coração, a leitura futurista de Soak de Mimi Goese e dos Hugo Largo, o som metálico aprendido nas audições de Colossal Youth e o espantoso aproveitamento dramático da percussão como já não se (ou)via desde Music For A New Society – entre outras coisas sublimes -, convergem harmonica e ritmicamente para uma paleta sonora impressionista e esteticamente visionária que atravessa todas as fronteiras possíveis - e que só por acaso sabemos situar-se geograficamente no norte da europa.
Midnight Sun Dream é a canção de embalar em ambiente surrealista, Blood From A Stone e Bandy Riddles convocam a Stina Nordenstam de And She Closed Her Eyes para cantar sobre miniaturas de rock falsamente exuberante em banho-maria, Salt Of The Earth junta a tensão dramática de Cale e Bernard Herrmann a uma Diamanda Galas em admirável estado de contrição e é uma das mais inesquecíveis canções de que há memória. E ainda falta recordar a espantosa desconstrução de Crack em devastadora derrocada fatal e a inclassificável (e indecifrável?) Bygd Til By, solução assombrosa que Björk não encontrou para resolver Vespertine.
Quanto ao que fica por dizer, tudo se resume à incredulidade que sentimos quando escutamos o disco: Mas de onde é que isto vem?
Não adivinho competição à altura para lhe tirar o título de gravação do ano, mas, sinceramente, já lhe estou a reservar lugar certo junto de clássicos intemporais da estirpe de Rock Bottom, Highway 61th Revisited, Astral Weeks ou Veedon Fleece, Swordfishtrombones ou Blood Money, Starsailor, Porcupine, I Want To See The Bright Lights Tonight, Motion ou Mettle.
Uma obra genial que quero guardar só para mim.
Salt of the earth
Seventeen