a dignidade da diferença
29 de Maio de 2011

 

«Um dos problemas mais instigantes da vanguarda – e o que faz muitos artistas instigantes fugirem dela como o diabo da cruz – é sua dúbia disposição em face da ambição, que lhe é intrínseca, de tornar-se a norma. Recentemente ouvi de Arto Lindsay que os músicos e produtores dessas formas mais em voga de dance music (techno) são consumidores vorazes de justamente desse reportório heroicamente defendido por Augusto (de Campos). Assim, muito mais do que Paul (McCartney) pode ter ouvido Stockhausen, esses garotos ouvem Varèse e Cage, Boulez e Berio. E, me diz Arto, só falam nisso. O que pensar? Nos anos 70, vozes conservadoras (e muito úteis) já se lamentavam para protestar contra o “modernismo nas ruas”. Mas onde e como se formará o ouvido coletivo naturalmente familiarizado com a músicas dos pós-serialistas ou pós-dodecafônicos?

 

 

E que mundo será esse em que uma música assim soe como música ao ouvido de “todos”? Ao ver quadros de Monet, meu filho de cinco anos comentou que eles eram “muito malfeitos se vistos de perto”, embora “parecessem bem-feitos” se olhados à distância. Eu próprio não sei dizer exatamente por que a música de Webern (sobretudo a mais radical) me pareceu indiscutivelmente bela desde a primeira audição. Serão os garotos da techno-dance um embrião de minoria de massa? O que acontecerá ao ouvido tonal tal como o conhecemos se o fracasso de público da música mais impopular for superado? Quando eu vi MTV pela primeira vez em Nova Iorque, escrevi um artigo intitulado “Vendo canções” (intencionalmente usando os dois sentidos da palavra vendo) em que faço perguntas um pouco mais superficiais mas que apontam na mesma direção: os procedimentos de filmes de vanguarda, jogados no lixo pelo cinema sério e pelo comercial, tinham finalmente se refugiado ali naqueles filmecos de rock’n’roll, que eram a um tempo ilustrações erráticas das canções e anúncios dos discos correspondentes. Hoje não aguento assistir a vídeos de rock por muito tempo: o excesso de imagens esforçando-se por parecerem bizarras me entediam, sobretudo na velocidade em que são editadas. Mas a questão permanece: as referências ao Chien Andalou ou a Metropolis – e todo o permanente parentesco com Le sang d’un poète, de Cocteau – estão num vídeo de rock exatamente e apenas com formas de Mondrian na minissaia de uma puta ou só agora o “modernismo” ou as “vanguardas” começam a perder direito a esses nomes de ruptura?»

Excerto do livro «Verdade Tropical», de Caetano Veloso

 

 

Webern, 5 Andamentos, para Quarteto de Cordas

publicado por adignidadedadiferenca às 01:39 link do post
16 de Julho de 2008

TRANSE

 

Se o tropicalismo se deveu em alguma medida a meus atos e minhas idéias, temos então de considerar como deflagrador do movimento o impacto que teve sobre mim o filme Terra em transe, de Glauber Rocha, em minha temporada carioca de 66-7. Meu coração disparou na cena de abertura, quando, ao som do mesmo cântico de candomblé que já estava na trilha sonora de Barravento – o primeiro longa-metragem de Glauber -, se vê, numa tomada aérea do mar, aproximar-se a costa brasileira. E, à medida que o filme seguia em frente, as imagens de grande força que se sucediam confirmavam a impressão de que aspectos insconscientes de nossa realidade estavam à beira de se revelar.

Glauber Rocha, o jovem diretor baiano, tinha se tornado, a essa altura, um verdadeiro líder cultural. Depois de rodar Barravento quando ainda morava na Bahia, ele impressionou diretores e críticos europeus com Deus e o Diabo na Terra do Sol, filme cheio de uma selvagem beleza que nos excitou a todos com a possibilidade de um grande cinema nacional. Não se tratava de uma conquista de padrão de qualidade: essa tinha sido a meta da Vera Cruz, produtora criada pelo empresário paulista Franco Zampari, que construiu um estúdio bem estruturado onde se produziam, até metade dos anos 50, filmes de bom acabamento. Para dirigir o empreendimento, Zampari convidou Alberto Cavalcanti, o cineasta brasileiro que atuara com sucesso na Inglaterra e na França e voltava ao Brasil atendendo a esse convite da elite brasileira para instituir uma indústria cinematográfica de alto nível entre nós. Era uma tentativa de superar o estágio primitivo do cinema comercial brasileiro, representado pelas comédias carnavalescas cariocas conhecidas como «chanchadas», uma fórmula inaugurada com sucesso nos anos 30. O movimento do cinema novo, na primeira metade dos anos 60, opôs-se tanto ao academicismo das produções respeitáveis da Vera Cruz quanto ao primarismo das chanchadas. A vitória de prestígio do movimento sobre essas duas tendências não foi atingida sem dificuldade, e não se pode dizer que a desatenção – quase hostilidade – a produções como O cangaceiro (Vera Cruz) ou O homem do Sputnik (chanchada) não pareçam hoje francamente injustas.

Glauber liderou prática e teoricamente o movimento do Cinema Novo. Seu livro Revisão crítica do cinema brasileiro argumenta em favor de um cinema superior nascido da miséria brasileira como o neo-realismo nascera da indigência das cidades italianas no imediato pós-guerra. Ali ele conclamava os jovens intelectuais de esquerda que se sentissem atraídos pelo cinema a inspirarem-se no Nelson Pereira dos Santos de Rio, 40 graus, e naturalmente isso significava desprezar tanto os sensatos que apenas tentavam encenar diante da câmera histórias razoavelmente roteirizadas, quanto os malandros que produziam diversão para um público semi-analfabeto.

O filme-emblema é Deus e o Diabo na Terra do Sol. (...) ousava livremente acima e além da submissão aos esquemas industriais e da reverência ao já estabelecido artisticamente. Abordando a temática do fanatismo religioso no Nordeste brasileiro – com evidentes ecos de Os sertões, o grande livro de Euclides da Cunha -, e retomando o imaginário do banditismo rural daquela região – a marca forte de O cangaceiro – Glauber, sem temer a mão às vezes pesada, às vezes canhestra com que exibia ensinamentos estéticos de Eisenstein, Rossellini, Buñuel ou Brecht (mais nouvelle vague e alguns cacoetes aprendidos no então para nós emergente cinema japonês), e lições ideológicas de marxistas, apresentava um painel exuberante e algo disforme (na Europa como no Brasil, chamou-se, creio que com acerto, «barroco») das forças épicas embutidas em nossa cultura popular. Na verdade, o resultado final desse filme o aproxima mais do genial Pasolini de O evangelho segundo s. Mateus do que de qualquer outro diretor: a fotografia sem contraluz, o delírio construído com matéria crua, a imposição de um mundo mental às imagens – tudo isso é compartilhado por esses dois filmes realizados no mesmo ano. Mas Deus e o Diabo na Terra do Sol não se apoiava em algo como a poderosa singeleza dos Evangelhos: ele tinha que dar conta de todo um imaginário e de toda uma problemática particulares do Brasil. Via-se na tela o próprio desejo dos brasileiros de fazer cinema.

 

Excerto do livro «Verdade Tropical» de Caetano Veloso

 

Deus e o Diabo na Terra do Sol

O Evangelho segundo S. Mateus

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