a dignidade da diferença
16 de Julho de 2015

 

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«As personagens de Tchékov esquecem-se que são personagens de Tchékov. Vemos isso de forma maravilhosa num dos seus primeiros contos, “O Beijo”, escrito quando tinha vinte e sete anos. Um soldado virgem beija uma mulher pela primeira vez na vida. Ele guarda essa memória e está ansioso por contar a experiência aos seus companheiros. Porém ao contar-lhes a história fica desiludido por só ter demorado um minuto a conta-la quando imaginava “que fosse durar a noite toda”. É frequente as personagens de Tchékov ficarem desiludidas com as histórias que contam e com inveja das histórias das outras pessoas. Mas ficar desiludida com a sua própria história é uma liberdade extraordinariamente subtil em literatura, porque implica a liberdade da personagem de se desiludir não só com a sua própria história mas, por extensão, com a história que Tchékov lhe atribuiu. Desta forma a personagem liberta-se da história de Tchékov para a interminável liberdade da desilusão. Está sempre a tentar fazer a sua própria história a partir da história que Tchékov lhe atribuiu, mas mesmo esta liberdade da desilusão será uma desilusão. (…) E no entanto, é uma liberdade. Vemo-lo perfeitamente em “O Beijo”. O soldado esquece-se que faz parte da história de Tchékov porque está completamente imerso na sua própria história. A sua história é interminável, e ele espera que dure a noite toda. No entanto, a história de Tchékov “conta-se num minuto”. No mundo de Tchékov, as nossas vidas interiores têm uma velocidade própria. São calendarizadas sem rigor. Regem-se por um almanaque ameno, e nos seus contos a vida interior choca com a vida exterior como dois sistemas cronológicos diferentes, como o calendário juliano em oposição ao gregoriano. Era isto que Tchékov queria dizer com “vida”. Foi esta a sua revolução.»

James Wood, The Broken Estate

23 de Novembro de 2013

 

Reunindo neste livro (The Broken Estate) um conjunto de ensaios que foi escrevendo durante vários anos sobre literatura e crença, o crítico literário James Wood, começando por distinguir com clareza realidade e realismo no domínio ficcional, abeira-se do universo literário de um naipe muito amplo e diversificado de escritores – de Jane Austen a Flaubert, ou de Julian Barnes a W. G. Sebald, por exemplo – propondo uma análise subjetiva a respeito da forma como aqueles escritores vivem e pensam a literatura, em que esta, segundo o autor, funciona como uma espécie de crença, de religião. Com alguma polémica, originalidade interpretativa, engenho argumentativo e conhecimento profundo da matéria, James Wood possibilita ainda uma releitura de autores consagrados a respeito dos quais pensávamos que já tudo estava escrito. Eis um pequeno excerto da introdução ao livro que resume satisfatoriamente a unidade temática dos seus ensaios:

 

 

«A ficção é obviamente uma forma de mentir, e historicamente, como bem o sabemos, este comércio com a falsidade é motivo de desconforto com os leitores. A brutalidade da rejeição do “realismo” de Roland Barthes talvez seja, em última análise, religiosa (por muito que ele seja considerado um esteta formalista secular), e representa uma espécie de intensa desilusão moral pelo facto de a ficção recorrer a artifícios e a truques, representa um protestantismo com vontade de esmagar a parafernália falsa, a maquinaria religiosa da narrativa, os vitrais e os ornamentos enganadores e deixar que a luz do Sol brilhe através das janelas abertas (é interessante que o alvo frequente do formalismo francês seja o artístico Flaubert enquanto o mais transparente dos realistas, Tolstói, raramente seja mencionado, porque é muito mais difícil “expor” a sua arte desta maneira). E na verdade, o tipo de crença que a ficção nos exige é muito diferente da crença religiosa. A ficção pede-nos que acreditemos, mas a qualquer momento podemos escolher não acreditar.

 

 

Este é seguramente o verdadeiro secularismo da ficção – e o motivo por que, apesar de ser mágica, é realmente a inimiga da superstição, a destruidora de religiões, a escrutinadora da falsidade. A ficção desloca-se na sombra da dúvida, sabe que é uma mentira verdadeira, sabe que a qualquer momento os seus argumentos podem falhar. A crença na ficção é sempre uma crença “como se”. A nossa própria crença é metafórica – é apenas semelhante à verdadeira crença, e portanto nunca é uma crença por inteiro. No seu ensaio “Sufferings and Greatness of Richard Wagner”, Thomas Mann escreve que a ficção é sempre uma questão do “não muito”: “Para o artista as novas experiências da ‘verdade’ são novos incentivos para o jogo, novas possibilidades de expressão, e não mais do que isso. O artista acredita nelas, leva-as a sério, na medida das suas necessidades a fim de lhes dar a expressão mais completa e mais profunda. Em tudo isso, ele é muito sério, sério até às lágrimas – e, no entanto, não muito – e consequentemente, nem um pouco. A sua seriedade artística é de uma natureza absoluta, é ‘fazer de conta a sério’.»

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