a dignidade da diferença
29 de Agosto de 2018

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Evitando, para já, correr o risco de considerá-lo eventual e exageradamente um acontecimento, julgo que “O Centro do Mundo”, estreia no romance de Ana Cristina Leonardo - com os seus dois protagonistas primordiais: Boris Skossyreff e Olhão - será, no mínimo, uma obra que trouxe algo de novo à nossa ficção. Incorporando a História da Europa do século XX nas pequenas histórias que se passam em Olhão (o centro do mundo) e combinando habilidosamente realidade e ficção, a autora afasta-se da estrutura convencional do romance, cultiva engenhosamente a ironia e a farsa, enquanto a prosa, rica e pícara, escrita num estilo vivo em que sobressai uma portentosa agilidade e concisão, progride num ritmo do expedito ao acelerado, exibindo deliciosamente a assinalável cultura de quem a escreveu. Falta-me o conhecimento enciclopédico da literatura para conseguir dissecar a fundo as prováveis influências da escritora (ainda assim, não me escaparam o poder de concisão de um Dinis Machado ou a visão trágico-cómica do Pirandello de “Um, Ninguém e Cem Mil”); escrevesse eu sobre cinema e sempre seria mais fácil. Com efeito, observei durante a leitura um certo distanciamento crítico próprio de um Mizoguchi – nem faço ideia se a Ana Cristina Leonardo o aprecia – e essa raríssima capacidade, impressa num Jean Renoir, por exemplo, para, apontando os defeitos das personagens, tratá-las simultaneamente com imensa ternura – não há uma única personagem que a autora despreze - que é evidente sobretudo nos depoimentos finais que conferem uma imensa dignidade aos seus protagonistas. Se “O Centro do Mundo”, enquanto criação, oferece realmente algo de novo e inspirador – poderia estar aqui horas a fio a indicar as singulares perspectivas da Ana Cristina Leonardo e a sua peculiar capacidade para sintetizar ideias e pensamentos - não deixa de ser surpreendente verificar que essa novidade seja notavelmente alcançada pelo reconhecimento das características especificas da sua autora, bem vincadas (e entretanto apuradas) nas suas crónicas e nos seus pequenos livros anteriores; marca essa que já permite afirmar que se este livro não foi escrito pela Ana Cristina Leonardo, então só pode ter sido o diabo por ela… Um grande livro que se lê com um entusiasmo renovado a cada novo capítulo.

publicado por adignidadedadiferenca às 23:13 link do post
03 de Maio de 2016

 

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Dinis Machado escreveu uma peculiar série de crónicas e críticas sobre cinema, a sua história e correspondentes afinidades, agora reunidas n' O Lugar das Fitas. De filmes, estilos, cineastas, actores, enredos e memórias fala o saudoso autor num registo singular, elegante, justo e sedutor, deixando, sem forçar, bem vincadas as suas impressões digitais, que, não obstante a algo desorganizada edição post mortem da ainda assim preclara Quetzal (à beira de misturar alhos com bugalhos, com a inclusão de alguns textos fora do contexto), tem a capacidade de cativar o leitor pelo poder de observação e original ângulo de visão, como bem ilustra este belo naco de prosa «O universo de Bergman é ilimitado. Começa por merecer respeito a maneira como este cineasta sai das tendências, hábitos e escolas de toda a espécie de cinema menor. (…) E se nada mais houvesse que esperar deste notável cineasta, bastaria o tom elevado e múltiplo que o caracteriza para que fosse de novo aguardado, urgentemente. É o tipo de artista que será eternamente interessante, porque se compraz em descobrir seja o que for, calibrando a comunicação através de uma rigorosa capacidade objectiva.»

publicado por adignidadedadiferenca às 20:27 link do post
10 de Fevereiro de 2016

 

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«O que é notável em “Os Anéis de Saturno” e em “Os Emigrantes” é a artificialidade reticente da narração de Sebald, através da qual os factos são recolhidos no mundo real e transformados em ficção. Isto é o oposto da banal leveza “faccional” de escritores como Julian Barnes e Umberto Eco, que pegam nos factos e desestabilizam-nos superficialmente dentro da ficção, que os agitam um pouco, mas cujas obras são, na verdade, um tributo à religião dos factos. A crença de escritores como estes na ficção não é suficientemente profunda para que abandonem o mundo real, brincam com a exatidão, vivem mesmo obcecados com a exactidão e a inexactidão, porque, para estes escritores, até mesmo os factos imprecisos são dotados de uma electricidade empírica, dado que nos despertam uma maior avidez de informação. Esta neurose informativa torna as suas ficções ruidosamente inofensivas. Para estes escritores, os factos são um desporto, acessórios semióticos e são, em última análise, de fácil interpretação. No entanto, para Sebald, os factos são indecifráveis, logo, trágicos. Sebald funciona de forma exactamente oposta à de Barnes ou Eco. Ainda que estes livros profundamente elegíacos sejam feitos das cinzas do mundo real, Sebald transforma os factos em ficção entrelaçando-os tão profundamente nas suas formas narrativas que nos dá a impressão de nunca terem pertencido à vida real e de apenas na prosa de Sebald terem encontrado a sua verdadeira existência. É este o movimento de qualquer ficção poderosa, por muito realista que seja: inserido na ficção, o mundo real ganha contornos mais fortes, mais ásperos, porque recebe um padrão intrincado que não existe na vida real. Na obra de Sebald os factos não parecem apenas ficção, tornam-se ficção, embora não deixem de ser reais e autênticos.»

James Wood, in A Herança Perdida

16 de Julho de 2015

 

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«As personagens de Tchékov esquecem-se que são personagens de Tchékov. Vemos isso de forma maravilhosa num dos seus primeiros contos, “O Beijo”, escrito quando tinha vinte e sete anos. Um soldado virgem beija uma mulher pela primeira vez na vida. Ele guarda essa memória e está ansioso por contar a experiência aos seus companheiros. Porém ao contar-lhes a história fica desiludido por só ter demorado um minuto a conta-la quando imaginava “que fosse durar a noite toda”. É frequente as personagens de Tchékov ficarem desiludidas com as histórias que contam e com inveja das histórias das outras pessoas. Mas ficar desiludida com a sua própria história é uma liberdade extraordinariamente subtil em literatura, porque implica a liberdade da personagem de se desiludir não só com a sua própria história mas, por extensão, com a história que Tchékov lhe atribuiu. Desta forma a personagem liberta-se da história de Tchékov para a interminável liberdade da desilusão. Está sempre a tentar fazer a sua própria história a partir da história que Tchékov lhe atribuiu, mas mesmo esta liberdade da desilusão será uma desilusão. (…) E no entanto, é uma liberdade. Vemo-lo perfeitamente em “O Beijo”. O soldado esquece-se que faz parte da história de Tchékov porque está completamente imerso na sua própria história. A sua história é interminável, e ele espera que dure a noite toda. No entanto, a história de Tchékov “conta-se num minuto”. No mundo de Tchékov, as nossas vidas interiores têm uma velocidade própria. São calendarizadas sem rigor. Regem-se por um almanaque ameno, e nos seus contos a vida interior choca com a vida exterior como dois sistemas cronológicos diferentes, como o calendário juliano em oposição ao gregoriano. Era isto que Tchékov queria dizer com “vida”. Foi esta a sua revolução.»

James Wood, The Broken Estate

18 de Julho de 2014

 

 

«A grandeza de Camus consiste em ter unido uma ética inflexível a uma inexaurível capacidade de felicidade, de viver a fundo a vida, como um baile popular ou um dia de sol à beira-mar, até na sua tragicidade enfrentada sem rebuço, recusando qualquer moral que reprima a alegria e o desejo. Camus tem um sagrado, religioso respeito pela existência, o qual o impede de qualquer transcendência, metafísica ou política, que pretenda sacrificá-la a fins superiores. Nenhum fim justifica meios delituosos, que pervertam os fins mais nobres, como acontece nas rebeliões – O Homem Revoltado – sempre traídas pelas revoluções; nenhum amor pelas vítimas – sempre defendidas por Camus contra os carrascos – as autoriza (nem autoriza os seus defensores) a tornarem-se por sua vez carrascos. Camus viveu a fundo o niilismo e o absurdo combatendo-os sem qualquer ilusão de alcançar uma verdade e encontrando um inexorável sentido e valor no viver; mesmo se Deus não existisse, nem por isso tudo seria permitido.»

Claudio Magris, in Alfabeti – Saggi di Letteratura

23 de Novembro de 2013

 

Reunindo neste livro (The Broken Estate) um conjunto de ensaios que foi escrevendo durante vários anos sobre literatura e crença, o crítico literário James Wood, começando por distinguir com clareza realidade e realismo no domínio ficcional, abeira-se do universo literário de um naipe muito amplo e diversificado de escritores – de Jane Austen a Flaubert, ou de Julian Barnes a W. G. Sebald, por exemplo – propondo uma análise subjetiva a respeito da forma como aqueles escritores vivem e pensam a literatura, em que esta, segundo o autor, funciona como uma espécie de crença, de religião. Com alguma polémica, originalidade interpretativa, engenho argumentativo e conhecimento profundo da matéria, James Wood possibilita ainda uma releitura de autores consagrados a respeito dos quais pensávamos que já tudo estava escrito. Eis um pequeno excerto da introdução ao livro que resume satisfatoriamente a unidade temática dos seus ensaios:

 

 

«A ficção é obviamente uma forma de mentir, e historicamente, como bem o sabemos, este comércio com a falsidade é motivo de desconforto com os leitores. A brutalidade da rejeição do “realismo” de Roland Barthes talvez seja, em última análise, religiosa (por muito que ele seja considerado um esteta formalista secular), e representa uma espécie de intensa desilusão moral pelo facto de a ficção recorrer a artifícios e a truques, representa um protestantismo com vontade de esmagar a parafernália falsa, a maquinaria religiosa da narrativa, os vitrais e os ornamentos enganadores e deixar que a luz do Sol brilhe através das janelas abertas (é interessante que o alvo frequente do formalismo francês seja o artístico Flaubert enquanto o mais transparente dos realistas, Tolstói, raramente seja mencionado, porque é muito mais difícil “expor” a sua arte desta maneira). E na verdade, o tipo de crença que a ficção nos exige é muito diferente da crença religiosa. A ficção pede-nos que acreditemos, mas a qualquer momento podemos escolher não acreditar.

 

 

Este é seguramente o verdadeiro secularismo da ficção – e o motivo por que, apesar de ser mágica, é realmente a inimiga da superstição, a destruidora de religiões, a escrutinadora da falsidade. A ficção desloca-se na sombra da dúvida, sabe que é uma mentira verdadeira, sabe que a qualquer momento os seus argumentos podem falhar. A crença na ficção é sempre uma crença “como se”. A nossa própria crença é metafórica – é apenas semelhante à verdadeira crença, e portanto nunca é uma crença por inteiro. No seu ensaio “Sufferings and Greatness of Richard Wagner”, Thomas Mann escreve que a ficção é sempre uma questão do “não muito”: “Para o artista as novas experiências da ‘verdade’ são novos incentivos para o jogo, novas possibilidades de expressão, e não mais do que isso. O artista acredita nelas, leva-as a sério, na medida das suas necessidades a fim de lhes dar a expressão mais completa e mais profunda. Em tudo isso, ele é muito sério, sério até às lágrimas – e, no entanto, não muito – e consequentemente, nem um pouco. A sua seriedade artística é de uma natureza absoluta, é ‘fazer de conta a sério’.»

26 de Outubro de 2013

 

 

Revistos pelo seu autor em 1969, o conjunto dos poemas de Jorge Luis Borges reunidos nas obras O Fervor de Buenos Aires, Lua Defronte e Caderno San Martin, escritos na sua juventude, foram recentemente publicados pela Quetzal no primeiro volume da sua Obra Poética. Não conseguindo esconder, aqui e ali, algumas marcas da inocência e do excesso de convicções próprios da juventude, os poemas do genial escritor argentino, depois de minuciosamente depurados, isto é, devidamente limados nos seus excessos ou extravagâncias formais, libertados de tudo o que é supérfluo e afastados na medida correta os inconvenientes da sobrecarga de sentimentalismo, não desonram, contudo, o seu autor e revelam até, no seu melhor, a originalidade, o lirismo, o prazer do exercício intelectual, a sabedoria, a serenidade ou a plasticidade da sua escrita, e ainda um par de outras características modernistas do autor, facilmente reconhecíveis no período áureo da sua criatividade e maturidade estética cuja estrutura metafísica convoca para o seu universo literário alguns dos grandes temas universais. Deixo-vos, como exemplo, o poema Manuscrito Achado Num Livro de Joseph Conrad, traduzido por Fernando Pinto do Amaral.

 

 

Nas terras que estremecem com o ardor estival,

O dia é invisível, puro e branco. O dia

é uma estria pungente numa gelosia,

uma febre no plaino, um fulgor litoral.

 

Porém, a antiga noite é funda como um jarro

de água côncava, aberta a infinitos sinais,

e em canoas, perante as estrelas fatais,

o homem mede o vago tempo com um cigarro.

 

Com o fumo desvanecem-se as constelações

remotas. O imediato perde história e nome.

O mundo é umas quantas vãs imprecisões.

O rio, primeiro rio. O homem, primeiro homem.

11 de Novembro de 2012

 

 

«Costumo regressar eternamente ao Eterno Retorno; nestas linhas vou tentar (com o socorro de algumas ilustrações históricas) definir os seus modos fundamentais. O primeiro tem sido imputado a Platão. Este, no trigésimo nono parágrafo do Timeu, afirma que os sete planetas, equilibradas as suas diferentes velocidades, regressarão ao ponto inicial de partida: revolução que constitui o ano perfeito. (…) Algum astrólogo que não tinha examinado em vão o Timeu formulou este irrepreensível argumento: se os períodos planetários são cíclicos, também a História Universal o será; ao cabo de cada ano platónico renascerão os mesmos indivíduos e cumprirão o mesmo destino. (…) Neste primeiro modo de conceber o eterno retorno, o argumento é astrológico. O segundo está vinculado à glória de Nietzsche, o seu mais patético inventor ou divulgador. Justifica-o um princípio algébrico: a observação de que um número n de objetos – átomos na hipótese de Le Bon, forças na de Nietzsche, corpos simples na do comunista Blanqui – é incapaz de um número infinito de variações. Das três doutrinas que enumerei, a mais racional é a de Blanqui. (…) Desta série perpétua de histórias universais idênticas observa Bertrand Russell: Muitos escritores são de opinião que a História é cíclica, que o presente estado do mundo, com os seus pormenores mais ínfimos, mais tarde ou mais cedo voltará. Como formulam esta hipótese? (…) A hipótese de a História ser cíclica pode enunciar-se desta maneira: formemos o conjunto de todas as circunstâncias contemporâneas de uma determinada circunstância; em certos casos todo o conjunto se antecede a si mesmo.

 

 

Chego ao terceiro modo de interpretar as eternas repetições: o menos pavoroso e melodramático, mas também o único imaginável. Quero dizer, a conceção de ciclos similares, não idênticos. É impossível formar o catálogo infinito de autoridades (…) De tal profusão de testemunhos basta-me copiar um, de Marco Aurélio: Mesmo que os anos da tua vida fossem três mil ou dez vezes três mil, lembra-te de que ninguém perde outra vida senão a que vive agora nem vive outra senão a que perde. (…) Lembra-te de que todas as coisas giram e voltam a girar pelas mesmas órbitas e que para o espectador é igual vê-la um século ou dois ou infinitamente. (…) Se lermos com alguma seriedade as linhas anteriores (…) veremos que declaram, ou pressupõem, duas ideias. A primeira: negar a realidade do passado e do futuro. Enuncia-a esta passagem de Schopenhauer: A forma de aparição da vontade é só o presente, não o passado nem o futuro: estes só existem para o conceito e pelo encadeamento da consciência, submetida ao princípio da razão. Ninguém viveu no passado, ninguém viverá no porvir, o presente é a forma de toda a vida. (…) A segunda: negar, como o Eclesiastes, qualquer novidade. A conjetura de que todas as experiências do Homem são (de qualquer modo) análogas, pode à primeira vista parecer um simples empobrecimento do mundo.»

História da Eternidade, de Jorge Luis Borges

19 de Maio de 2012

 

 

Impossível resistir ao ritmo desta ficção imensa, tão viva, rica e imprevisível, à destreza da sua linguagem, ao filão inesgotável de ideias e ao delicioso e comovedor cruzamento de personagens arrebatadoras. Obra perene de Saul Bellow, autor maior, que, num rasgo de génio (entre tantos outros), a sintetizou admiravelmente nesta meia dúzia de linhas: «Humboldt, aquele homem grandiloquente, imprevisível e atraente, de rosto largo e alourado, aquele homem encantador e desenvolto, profundamente inquieto e a quem eu me sentia tão ligado, viveu com paixão, até ao fim, o problema do Êxito. Como é natural, morreu no Fracasso. Que outra consequência pode resultar de escrever esses substantivos com maiúsculas?»

 

03 de Abril de 2012

 

 

A propósito da releitura que estou a fazer do hiperclássico Madame Bovary, a famosa história de Emma, mulher adúltera e sensual do médico de província Charles Bovary, escrito pelo soberbo Gustave Flaubert - responsável pelo desenvolvimento de  um novo tipo de realismo e acusado, na época (1857), de ofensas à moral pública e à religião -, não resisti à tentação de recordar este exemplo supremo da escrita talentosa e deliciosa de Julian Barnes, uma mistura notável de humor, crítica, ficção, realidade, solidão, arte e filosofia, retirado d’O Papagaio de Flaubert, que se constrói precisamente sobre a vida do genial romancista e que é, para mim, a sua obra-prima: «Deixem-me contar-lhes por que não gosto nada de críticos. Não pelas razões habituais: serem criadores falhados (geralmente não são, podem ser é críticos falhados, mas isso é outro assunto); ou serem por natureza maus, invejosos e vaidosos (geralmente não são; o mais de que os podemos acusar é de serem ultragenerosos, de sobrevalorizaram obras menores para que assim a sua perspicácia sobressaia). Não, a razão por que odeio os críticos – bem, às vezes – é porque escrevem frases deste género: Flaubert não constrói as suas personagens, como fazia Balzac, através da descrição exterior e objectiva; de facto, é tão descuidado com o aspecto exterior delas que uma vez dá a Emma olhos castanhos, outra olhos de um negro profundo, e outra olhos azuis. Esta acusação precisa e desanimadora foi lançada pela Dra. Enid Starkie, já falecida, leitora jubilada de Literatura Francesa na Universidade de Oxford, e a mais exaustiva biógrafa de Flaubert na Grã-Bretanha. (…) Devo confessar que todas as vezes que eu li Madame Bovary nunca notei o arco-íris dos olhos da heroína. Deveria ter notado? E vocês? Talvez eu estivesse muito ocupado a reparar em coisas que escaparam à Dra. Starkie (embora neste momento não pense quais possam ter sido). (…) A minha leitura poderá ser inútil em termos de história da crítica literária; mas não é inútil em termos de prazer. Não posso provar que os leitores leigos têm mais prazer nos livros que os críticos profissionais; mas posso apontar-vos uma vantagem que temos sobre eles. Podemos esquecer. A Dra. Starkie e os seus camaradas estão amaldiçoados com a memória: os livros sobre os quais ensinam e escrevem não se lhes podem apagar do cérebro.

 

 

Entretanto, o leitor comum mas interessado pode esquecer; pode partir para outra, ser infiel com outros escritores, voltar a extasiar-se de novo. Na sua relação, a conjugalidade não precisa nunca de se introduzir; pode ser uma relação esporádica, mas, enquanto existe, é sempre intensa. Não há vestígios de rancor diário que se cria quando as pessoas vivem juntas bovinamente. Nunca me acontece recordar a Flaubert, com uma voz fatigada, que pendure o tapete da banheira ou que use o piaçaba. O que parece é que a Dra. Starkie não é capaz de deixar de o fazer. (…) Olhos castanhos, olhos azuis. Será importante? Não, é importante se o escritor se contradiz; mas será que é importante de que cor são realmente? Tenho pena dos romancistas que têm de mencionar os olhos das mulheres: a escolha é tão limitada, e seja qual for a cor escolhida traz inevitavelmente implicações banais. (…) Acabei de reler Madame Bovary. (…) E a moral da história é, penso eu: nunca se assustem com uma nota de rodapé. Eis as seis referências que Flaubert faz aos olhos de Emma Bovary ao longo do livro. É evidente que se trata de um assunto de certa importância para o romancista: ‘O que tinha de belo eram os olhos: apesar de serem castanhos, pareciam pretos por causa das pestanas…’, ‘Os seus olhos pareciam-lhe maiores, especialmente quando estava a acordar e abria e fechava as pálpebras muitas vezes de seguida; eram negros quando estava à sombra e azul-escuros à luz do Sol; e pareciam ter camadas de cor sucessivas, que, mais espessas no fundo, se tornavam mais delgadas na superfície, que parecia esmaltada.’, (Num baile à luz das velas) ‘Os seus olhos negros pareciam ainda mais negros.’, ‘Fixando-o com os seus grandes olhos negros muito abertos.’, ‘Os seus olhos negros.’, e ‘Os seus olhos nunca tinham sido tão grandes, tão negros, tão profundos.’ Seria interessante comparar o tempo gasto por Flaubert a certificar-se de que a sua heroína tinha os olhos invulgares e difíceis de uma adúltera trágica com o tempo gasto pela Dra. Starkie a depreciá-lo.»

Excerto de O Papagaio de Flaubert, de Julian Barnes, tradução de Ana Maria Amador.

publicado por adignidadedadiferenca às 23:37 link do post
03 de Fevereiro de 2012

 

 

«A literatura difere da vida na medida em que a vida é homogeneamente repleta de detalhes, e raramente nos chama a atenção para eles, enquanto a literatura nos ensina a reparar – a reparar na maneira como a minha mãe, digamos, limpa os lábios antes de me beijar; no som de berbequim de um táxi londrino, quando o seu motor a diesel entra flacidamente em ponto morto; na semelhança das linhas brancas nos casacos de cabedal velho com as estrias de gordura em bocados de carne; na maneira como a neve recente “range” debaixo dos pés; na maneira como os braços de um bebé são tão gordos que parecem atados com cordéis (ah, os outros exemplos são meus, mas o último é de Tolstoi!). Esta educação é dialéctica. A literatura faz de nós melhores observadores da vida; e permite-nos exercitar o dom na própria vida; que por sua vez nos torna mais atentos ao detalhe na literatura; que por sua vez nos torna mais atentos ao detalhe na vida. E assim sucessivamente. Basta dar aulas de Literatura para perceber que muitos jovens leitores são fracos observadores. Os meus próprios livros, caprichosamente anotados, há vinte anos atrás, nos meus tempos de estudante, mostram-me que eu sublinhava, como dignos de aprovação, detalhes e imagens e metáforas que agora me parecem banais, enquanto ignorava serenamente coisas que agora me parecem maravilhosas. Vamos crescendo como leitores, e leitores de vinte anos são praticamente virgens. Ainda não leram literatura suficiente para serem ensinados por ela a lê-la melhor.»

James Wood, a mecânica da ficção, tradução: Rogério Casanova

02 de Dezembro de 2011

 

 

Acabou de ser publicado, em edição nacional da Quetzal, o mais recente trabalho do escritor Julian Barnes, The Sense of an Ending (O Sentido do Fim, na tradução portuguesa de Helena Cardoso), o qual, como é do conhecimento comum, foi galardoado com o Man Booker Prize 2011. Depois, sobretudo, dos extraordinários O Papagaio de Flaubert e Nada a Temer, Barnes, neste livro, apura ainda mais a sua escrita elegante, aperfeiçoando a construção das frases, recorrendo mais habilmente ao humor e à mordacidade ou descobrindo soluções surpreendentes para a narrativa, conjugando superiormente um clima de crescente tensão com não raros momentos de sublime delicadeza. Tudo magistralmente aproveitado para o seu autor nos oferecer uma agridoce meditação sobre o peso da memória e a instabilidade do nosso conhecimento. Um livro soberbo.

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