São, para mim, as duas melhores publicações escritas por críticos de música portugueses que se debruçam sobre a matéria pop. Mais apaixonado e, por isso, sujeito ao erro – se é que tal coisa existe num conjunto de textos naturalmente subjectivo – e a mudanças repentinas de opinião o livro do Miguel Esteves Cardoso, mais profundo e fundamentado o Provas de Contacto de João Lisboa. Ambos magnificamente enriquecidos por uma visão musical com um forte pendor literário, que conseguem tratar os discos que (muito) amam como se fossem personagens de um livro ou de um filme.
É certo que a minha preferência vai para o Provas de Contacto por muitas e boas razões. Por incluir algumas das mais extraordinárias entrevistas jamais feitas a muitos dos meus músicos preferidos, conseguindo o autor com uma dúzia de perguntas certeiras transmitir de forma concisa e preciosa o essencial do universo musical (e não só) do entrevistado. Por lá passam tantos dos meus “heróis”: John Cale, Lou Reed, Tom Waits, Caetano Veloso, Robert Wyatt, Suzanne Vega, Björk, Sonic Youth, Rickie Lee Jones, Nick Cave, David Byrne, Leonard Cohen, Marianne Faithfull, Lloyd Cole, P. J. Harvey entre outros. E se já não bastasse, João Lisboa acrescenta, ainda, numa “segunda parte” um punhado de portentosos textos críticos repletos com a imensa ironia, cultura, enquadramento estético da obra a que já nos habituou mais aquela felina tendência para agrupar um conjunto de frases de que mais ninguém se lembraria para descrever na perfeição aquilo que acabámos de escutar. Experimentem ler os explêndidos «Sim, pode-se» sobre os Velvet Underground e «Em louvor da perna de pau».
Um reparo apenas: que falta fazem (fizeram?) alguns textos e entrevistas com e sobre músicos portugueses! Estou-me a lembrar, por exemplo, daquela prosa que João Lisboa dedicou (nos anos 90) à edição em suporte digital da obra da Banda do Casaco – suponho que o No jardim da Celeste e o Também eu -, onde, com apenas dois ou três parágrafos, destruiu o mito que começaram a fazer da pré-história da música pop/rock feita em Portugal reduzindo-a àquilo que ela teve de significativo. Ou seja, nada.
Se Escrítica pop, na minha opinião, não é tão meritório, não deixa de ser magnífico e único no panorama musical português. Textos e opiniões direccionados para um contexto temporal muito restrito – entre 1980 e 1982 – acerca de uma série de bandas em que o jornalista confessa já ter mudado o seu juízo sobre algumas delas, ficam na memória essencialmente pela intensa paixão que MEC colocou no que escreveu, de uma forma extremamente cativante e original. Claro que não resisto à curiosidade de (re)avaliar as estrelas com que classifica os discos mais marcantes da época e de reparar como, mesmo sabendo que todos os discos estão sujeitos às oscilações críticas que acompanham a máquina do tempo, consigo detectar algumas falhas importantes. Como pode o Miguel Esteves Cardoso não ter reparado, já naquela altura, nos excelentes Comsat Angels, The Sound, Magazine, XTC ou Elvis Costello? Mas, na realidade, a excelência de muitos dos seus textos apaga alguns pormenores negativos mas, notoriamente, insignificantes.
Do que me vou recordar sempre é do uso que MEC faz de uma escrita pessoal e ficcionada para deslumbrar os seus habituais leitores, nomeadamente quando fala de forma sublime dos Joy Division e do inclassificável Heaven up here dos lendários Echo and The Bunnymen.
Echo and the Bunnymen "All my colours"
Joy Division "Decades"