«Já referi a repulsa que Darwin sentia – e que era partilhada pelos seus contemporâneos – pelo exemplo da fêmea da vespa icneumonídea, que paralisa a presa com o seu ferrão sem a matar, mantendo assim a carne fresca para a larva que se desenvolve no interior da vítima. Recordar-se-á de que Darwin não conseguia aceitar que um criador benfazejo pudesse ter concebido esse comportamento. Mas com a seleção natural ao volante, tudo se torna claro, compreensível e com sentido. À seleção natural não importa o bem-estar. Porque deveria importar? Para algo acontecer na natureza, o único requisito é que o mesmo acontecimento, em tempos ancestrais, tenha contribuído para a sobrevivência dos genes que o promovem. A sobrevivência dos genes é uma explicação suficiente para a crueldade das vespas e para a indiferença empedernida da natureza: suficiente – e satisfatória para o intelecto se não para a compaixão humana.
Sim, há grandeza nesta visão da vida, e há até uma certa grandeza na indiferença serena da natureza ao sofrimento que decorre inexoravelmente do princípio orientador, a sobrevivência dos mais aptos. Os teólogos poderão estremecer com este eco de um estratagema habitual da teodiceia, onde o sofrimento é visto como uma inevitabilidade do livre-arbítrio. Os biólogos, por seu turno, perceberão que “inexoravelmente” não é de modo algum demasiado forte quando refletem – talvez segundo as linhas da minha reflexão sobre a “bandeira vermelha” do capítulo precedente – sobre a função biológica da capacidade de sofrer. Se os animais não sofrem, é porque alguém não está a trabalhar o suficiente na questão da sobrevivência dos genes. Os cientistas são humanos, e têm todo o direito de rejeitar a crueldade e de condenar o sofrimento. Mas os bons cientistas como Darwin reconhecem que as verdades do mundo real, por muito desagradáveis que sejam, têm de ser enfrentadas.»
O Espetáculo da Vida, de Richard Dawkins, tradução: Isabel Mafra