Eis uma pequena pérola, entre tantos outros belíssimos exemplos, do magnífico Nada a Temer, de Julian Barnes, autêntico e surpreendente manual de sobrevivência, a propósito do qual já aqui elogiámos merecidamente a ironia, a inteligência, a elegância e o modo descomplexado como nos ajuda a reflectir sobre a morte, através da meditação filosófica, religiosa ou literária:
Flaubert perguntou «É esplêndido ou é estúpido levar a vida a sério?» E disse que devíamos ter «a religião do desespero», ser «iguais ao nosso destino, isto é, impassíveis como ele». Ele sabia o que pensava sobre a morte: «O eu sobrevive? Dizer que sim parece-me um mero reflexo da nossa presunção e do nosso orgulho, um protesto contra a ordem eterna! A morte não deve ter mais segredos para nos revelar senão a vida.» Mas, mesmo não confiando nas religiões, sentia uma ternura pelo impulso espiritual e desconfiava do ateísmo militante. «Cada dogma em particular repugna-me», escreveu. «Mas considero que o sentimento que os engendrou é a expressão de humanidade mais natural e poética. Não gosto dos filósofos que o rejeitaram como disparate e intrujice. O que eu encontro nele é necessidade e instinto. Por isso respeito o homem negro que beija o fetiche e o católico que ajoelha ante o Sagrado Coração.»