A propósito da releitura que estou a fazer do hiperclássico Madame Bovary, a famosa história de Emma, mulher adúltera e sensual do médico de província Charles Bovary, escrito pelo soberbo Gustave Flaubert - responsável pelo desenvolvimento de um novo tipo de realismo e acusado, na época (1857), de ofensas à moral pública e à religião -, não resisti à tentação de recordar este exemplo supremo da escrita talentosa e deliciosa de Julian Barnes, uma mistura notável de humor, crítica, ficção, realidade, solidão, arte e filosofia, retirado d’O Papagaio de Flaubert, que se constrói precisamente sobre a vida do genial romancista e que é, para mim, a sua obra-prima: «Deixem-me contar-lhes por que não gosto nada de críticos. Não pelas razões habituais: serem criadores falhados (geralmente não são, podem ser é críticos falhados, mas isso é outro assunto); ou serem por natureza maus, invejosos e vaidosos (geralmente não são; o mais de que os podemos acusar é de serem ultragenerosos, de sobrevalorizaram obras menores para que assim a sua perspicácia sobressaia). Não, a razão por que odeio os críticos – bem, às vezes – é porque escrevem frases deste género: Flaubert não constrói as suas personagens, como fazia Balzac, através da descrição exterior e objectiva; de facto, é tão descuidado com o aspecto exterior delas que uma vez dá a Emma olhos castanhos, outra olhos de um negro profundo, e outra olhos azuis. Esta acusação precisa e desanimadora foi lançada pela Dra. Enid Starkie, já falecida, leitora jubilada de Literatura Francesa na Universidade de Oxford, e a mais exaustiva biógrafa de Flaubert na Grã-Bretanha. (…) Devo confessar que todas as vezes que eu li Madame Bovary nunca notei o arco-íris dos olhos da heroína. Deveria ter notado? E vocês? Talvez eu estivesse muito ocupado a reparar em coisas que escaparam à Dra. Starkie (embora neste momento não pense quais possam ter sido). (…) A minha leitura poderá ser inútil em termos de história da crítica literária; mas não é inútil em termos de prazer. Não posso provar que os leitores leigos têm mais prazer nos livros que os críticos profissionais; mas posso apontar-vos uma vantagem que temos sobre eles. Podemos esquecer. A Dra. Starkie e os seus camaradas estão amaldiçoados com a memória: os livros sobre os quais ensinam e escrevem não se lhes podem apagar do cérebro.
Entretanto, o leitor comum mas interessado pode esquecer; pode partir para outra, ser infiel com outros escritores, voltar a extasiar-se de novo. Na sua relação, a conjugalidade não precisa nunca de se introduzir; pode ser uma relação esporádica, mas, enquanto existe, é sempre intensa. Não há vestígios de rancor diário que se cria quando as pessoas vivem juntas bovinamente. Nunca me acontece recordar a Flaubert, com uma voz fatigada, que pendure o tapete da banheira ou que use o piaçaba. O que parece é que a Dra. Starkie não é capaz de deixar de o fazer. (…) Olhos castanhos, olhos azuis. Será importante? Não, é importante se o escritor se contradiz; mas será que é importante de que cor são realmente? Tenho pena dos romancistas que têm de mencionar os olhos das mulheres: a escolha é tão limitada, e seja qual for a cor escolhida traz inevitavelmente implicações banais. (…) Acabei de reler Madame Bovary. (…) E a moral da história é, penso eu: nunca se assustem com uma nota de rodapé. Eis as seis referências que Flaubert faz aos olhos de Emma Bovary ao longo do livro. É evidente que se trata de um assunto de certa importância para o romancista: ‘O que tinha de belo eram os olhos: apesar de serem castanhos, pareciam pretos por causa das pestanas…’, ‘Os seus olhos pareciam-lhe maiores, especialmente quando estava a acordar e abria e fechava as pálpebras muitas vezes de seguida; eram negros quando estava à sombra e azul-escuros à luz do Sol; e pareciam ter camadas de cor sucessivas, que, mais espessas no fundo, se tornavam mais delgadas na superfície, que parecia esmaltada.’, (Num baile à luz das velas) ‘Os seus olhos negros pareciam ainda mais negros.’, ‘Fixando-o com os seus grandes olhos negros muito abertos.’, ‘Os seus olhos negros.’, e ‘Os seus olhos nunca tinham sido tão grandes, tão negros, tão profundos.’ Seria interessante comparar o tempo gasto por Flaubert a certificar-se de que a sua heroína tinha os olhos invulgares e difíceis de uma adúltera trágica com o tempo gasto pela Dra. Starkie a depreciá-lo.»
Excerto de O Papagaio de Flaubert, de Julian Barnes, tradução de Ana Maria Amador.