a dignidade da diferença
03 de Novembro de 2018

Impressionismos, abstracções sonoras, cânticos que desafiam a lei da gravidade, lamentos arrepiantes da natureza, vestígios de um mundo apocalíptico e aproximações (sobretudo) ao universo estético de Laurie Anderson, Meredith Monk e Annette Peacock, moldam a mais recente e personalizada gravação de estúdio de Julia Holter, que sucede à do belíssimo "Have You In My Wilderness" (de 2015), exibindo aquele género muito particular de música que apetece esconder do resto do mundo e manter como um segredo bem guardado. Um álbum (Aviary) inclassificável, progressivamente viciante, extraordinário e de fulgurante variedade expressiva. O futuro é já ali...

 

 

04 de Setembro de 2018

 

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Há um bom par de anos que venho consolidando a ideia segundo a qual a qualidade média das gravações de música escrita e interpretada pelas mulheres é significativamente superior à dos seus pares masculinos. As provas mais convincentes vão-se semeando por aí, ano após ano, destacando-se os nomes de Annie Clarke/St.Vincent, Shara Worden/My Brightest Diamond, Regina Spektor, Neko Case, Alela Diane, Björk, PJ Harvey, Julia Holter, Laura Marling, Sharon Van Etten, Anna Meredith, Anna Calvi, Jesca Hoop, Nina Nastasia e as Goat Girl. Não sendo fácil, por seu turno, encontrar uma explicação para o sucedido, julgo que ela não andará muito longe da circunstância de as mulheres necessitarem de uma maior afirmação para se conseguirem impor num universo musical pop/rock predominantemente masculino, aparecendo apenas quando sentem que têm algo importante para dizer. O mais recente testemunho surge agora na voz de Anna Calvi. Corajoso manifesto feminista e queer, “Hunter”, num gesto mais urgente e imediato, liberta-se um pouco do universo cinemático mais elaborado dos discos anteriores, mantém a sedução da voz operática da cantora e explora o panorama sombrio das visões de David Lynch, pela via musical de Angelo Badalamenti, bem como a ambiguidade musical/sexual reconhecida em David Bowie. Tenso, eléctrico e linear, mas também elegante e intimista, “Hunter” é um magnífico objecto de desejo, belo e selvagem, representando um conjunto expressivo de ideias em vez de uma mera sucessão mais ou menos articulada de acordes, conforme pretendia justamente a sua autora.

 

 

publicado por adignidadedadiferenca às 00:38 link do post
30 de Junho de 2017

 

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«If the pulse of now felt weaker with each passing year, that’s because in the 2000s the pop present became ever more crowded out by the past , whether in the form of archived memories of yesteryear or retro-rock leeching off ancient styles. Instead of being about itself, the 2000s has been about every other previous decade happening again all at once: a simultaneity of pop time that abolishes history while nibbling away at the present’s own sense of itself as an era with a distinct identity and feel. Instead of being the threshold to the future, the first ten years of the twenty-first century turned out to be the “Re” Decade. The 2000s were dominated by the “re-“ prefix: revivals, reissues, remakes, re-enactments».

Simon Reynolds, in Retromania, Pop Culture's Addiction to Its Own Past

publicado por adignidadedadiferenca às 00:25 link do post
29 de Maio de 2017

 

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Enquanto, por cá, prossegue o ciclo dedicado a Kenji Mizoguchi, com uma sucessão de planos-sequência (imagem de marca do autor) e alguns dos mais belos movimentos de câmara da história do cinema (com essa rara capacidade para esculpir uma cena), Andrei Tarkovsky, outro cineasta superlativo - a quem apenas encaixará a acusação de falta de sentido de humor - parece estar também na ordem do dia. Com efeito, por um lado, Ryuichi Sakamoto elabora, programa e arruma o seu mais recente e notável "async" como uma banda-sonora para um filme imaginário do cineasta russo, inspirando-se, no caso vertente, em imagens conhecidas de alguns dos seus filmes, rumo a uma música que, abastecendo-se num matizado caldeirão de cultura, tradição, vanguarda e experimentalismo, vai progressivamente eliminando as suas fronteiras, tornando-se transparente e, por vezes, ausente, sempre difícil de catalogar. Por outro lado, chegou agora a vez do Tarkovsky Quartet incluir nas suas gravações - que compõem as belíssimas e rarefeitas peças musicais de "Nuit Blanche" – sucintas alusões ao pensamento e à estética austera do cineasta russo, cuja música (onde se descobrem amiúde traços característicos da escrita de Nino Rota ou Tomasz Stanko) esboça e acompanha vagamente alguns dos sonhos, inquietações e profecias de Tarkovsky.

 

 

publicado por adignidadedadiferenca às 00:23 link do post
01 de Maio de 2017

 

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O que impede o mais recente álbum dos Dirty Projectors – regresso da banda nova-iorquina após os notáveis “Bitte Orca” e “Swing Lo Magellan” – de cair no pântano do banalizado e algo esgotado território das “torch songs” é a curiosidade e o elevado grau de insatisfação dos seus autores. Com efeito, essas curiosidade e insatisfação confere-lhes uma ampla capacidade para traduzir a linguagem nova que desponta num corpo autónomo, alimentado por fragmentos sonoros extraídos de uma enciclopédia musical, constituídos por melodias, textos, arranjos e instrumentação, daquele género muito particular que “primeiro estranha-se e depois entranha-se”: estruturalmente esquelético e dissonante, habitado, átomo a átomo, por pequenas assombrações e confissões, perspectivas oblíquas e melodias contagiosas. Tudo isso e uma singular aptidão de recriação estética que, sem desviar o olhar do presente ou do passado até, permite antever o futuro a quem os escuta…

 

 

publicado por adignidadedadiferenca às 17:27 link do post
31 de Dezembro de 2016

David Bowie e Leonard Cohen ofereceram-nos duas magníficas despedidas. Blackstar é o melhor trabalho de Bowie desde 1.Outside (1995) e Cohen não gravava nada tão bom desde o sublime Songs of Love and Hate (1971). Mas a terceira idade não ficou por aqui: também Paul Simon deixou a sua marca este ano com o extraordinário e ousado Stranger to Stranger e Iggy Pop com o inesperadamente óptimo Post Pop Depression. Se adiantarmos que PJ Harvey (autora do fabuloso The Hope Six Demolition Project) e os Tindersticks (que exploraram novos caminhos, ampliando a sua paleta sonora em The Waiting Room) já andam nestas andanças há três décadas, será caso para afirmar que em 2017 impôs-se a veterania. Numa lista tão curta ficou de fora algo injustamente o regresso de Shirley Collins, após um longuíssimo interregno, bem como as óptimas gravações de Charlie Hilton, Christy Moore, Fred Hersch e Gisela João, o prodígio de improvisação do último álbum do saxofonista Henry Threadgill, a voz extraordinária de Anna Netrebko (oiçam-na em Verismo), La Mascarade, de Rolf Lislevand, e ainda as clássicas interpretações de Harnoncourt (quarta e quinta sinfonias de Beethoven) e Daniil Trifonov.

 

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PJ Harvey, "The Hope Six Demolition Project"

 

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Michael Formanek/Ensemble Kolossus, "The Distance"

 

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BADBADNOTGOOD IV 

 

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Ensemble Céladon/Paulin Bündgen, "The Love Songs of Jehan de Lescurel"

 

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Paul Simon, "Stranger to Stranger"

 

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William S. Burroughs, "Let Me Hang You"

 

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Alisa Weilerstein/Pablo Heras-Casado, "Shostakovich: Cello Concertos 1, 2"

 

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Anna Meredith, "Varmints"

 

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Tindersticks, "The Waiting Room"

 

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Sampladélicos, "Não Nos Dexeis Cair em Tradição"

 

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Mark Dresser Seven, "Sedimental You"

 

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Lucia Cadotsch, "Speak Low"

publicado por adignidadedadiferenca às 21:12 link do post
22 de Novembro de 2016

 

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Após o inesperado golpe de rins estético, iniciado com o sereno e quase invisível White Chalk, em 2007, PJ Harvey abandona definitivamente a pele que vestiu durante a intensa, descarnada e eléctrica cavalgada sonora de punk e blues, que alimentou o capítulo inicial da sua carreira - cujo opus magnum será ainda o teatral, dramático, imoral e sedutor To Bring You My Love, de 1995, - e prossegue a via dos doze amargos episódios que compunham o magnífico Let England Shake, o qual, em 2011, serviu de pretexto para fazer a ponte entre o desmedido morticínio da Primeira Guerra Mundial e a hipocrisia da política contemporânea. Nessa linha, PJ Harvey, acompanhada pelo fotógrafo Seamus Murphy, decidiu explorar alguns dos mais recentes e devastados bairros sociais e palcos de guerra contemporâneos (leste do Anacostia, em Washington D.C., Kosovo e Afeganistão), e dessa proximidade no terreno arranca um notável, pujante e arrebatador conjunto de canções eléctricas no qual o saxofone e a percussão marcial assumem uma importância primordial. E é nesse irrepreensível mosaico musical que PJ Harvey, assumindo o papel de documentada repórter de guerra, expõe, com uma admirável precisão clínica, a arrepiante e inabitável realidade, macerada por múltiplas feridas que a crescente perversidade do poder, da religião e das desigualdades sociais impede de cicatrizar. Posicionando-se na dianteira como um dos indiscutíveis do ano, The Hope Six Demolition Project , vibrante colecção de onze corais eléctricos, plenos de acuidade melódica e insistência rítmica, será também, na linha de Let England Shake, um dos grandes discos políticos da última década.

 

 The Wheel

 

30 de Setembro de 2016

 

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Richard Wagner chegou a Veneza em Agosto de 1858. Da sua vivência na cidade recorda «uma atmosfera crepuscular e solene», onde conviviam nobreza, beleza e decadência. Por sua vez, os ecos da música de Wagner inspiraram o talentoso Uri Caine a reinventar algumas das suas composições, num registo que viria também a empregar com a música de Mozart, Schumann, Mahler e Bach (numa soberba reinterpretação das Variações Goldberg). Quebrando barreiras e devorando géneros musicais, o modus operandi do Uri Caine Ensemble consiste numa sucessiva aproximação de estilos e eliminação de fronteiras estéticas. Consegui-lo com a agilidade, a organização, a liberdade e, amiúde, a transcendência que Wagner e Venezia revela - no qual, vinte anos praticamente decorridos, ainda sobressai a vitalidade original -, fazendo as apropriações, os arranjos e as improvisações da música do genial compositor e maestro alemão soar de forma quase instintiva e natural, sem perder a erudição dos seus modelos – excertos de Tristão e Isolda, Tannhäuser ou Lohengrin, por exemplo - já é uma proeza que não estará ao alcance de muitos…

 

 

 

publicado por adignidadedadiferenca às 22:15 link do post
09 de Setembro de 2016

 

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 A dedicação de Giuseppe Verdi à criação da partitura de La Traviata em pouco mais de quatro semanas – mais precisamente entre a estreia de Il Trovatore em Roma, no dia 19 de Janeiro de 1853, e o dia 6 de Março do mesmo ano – ilustra bem a fecundidade do seu génio, bem como o seu desembaraço na composição. Não é esse, contudo, o seu maior feito, pois La Traviata impressiona sobretudo pelo seu estilo tão distinto da ópera anterior, Il Trovatore. Com efeito, enquanto esta última pulsa com as paixões de amor, ódio ou vingança, confinadas aos jardins palacianos, castelos ou masmorras - cenários rigorosamente apropriados ao incentivo de tais sentimentos – a primeira, pelo contrário, quando palpita é de dor e decorre em interiores burgueses, com música a condizer: viva, espirituosa e delicada, tão rica nas suas subtilezas e expressividade melódica que consegue transmitir, ainda hoje, de forma tão cortante e eloquente, as sensibilidades, esperanças e vicissitudes das suas personagens. A versão dirigida pelo maestro James Conlon, com Renée Fleming, Rolando Villazón e Renato Bruson nos principais papéis, advoga de modo convincente.

 

 

14 de Julho de 2016

 

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Se ao longo da sua carreia se revelaram absolutamente incapazes de gravar um mau disco, a verdade é que o motor criativo dos Tindersticks parecia há muito ter arrefecido. Tratou-se, percebêmo-lo agora, de pura ilusão, pois a natureza profunda da sua pop orquestral, aprimorada pela experiência acumulada durante praticamente três décadas e umas sentidas pinceladas de soul, acaba de regressar não só intacta como inesperadamente renovada pelo vigor rítmico de Tony Allen e a subtileza de alguns (des) arranjos jazzísticos de Julian Siegel, no magnífico The Waiting Room. Em 2016, a música dos Tindersticks - cinemática, sombria q.b., discreta, estranha e melancólica -, na qual o padrão rítmico assume um papel no mínimo tão importante como aquele que é proporcionado pelos encadeamentos melódicos e harmónicos, ganha um novo fôlego criativo numa gravação que aponta em múltiplas e admiráveis direcções. Para conferir nos diversos concertos da banda liderada por Stuart Staples que irão ocorrer no nosso país este ano.

 

publicado por adignidadedadiferenca às 19:29 link do post
10 de Maio de 2016

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Nevertheless, what remains of Pentangle as an entity – six fearlessly inventive albums and, for the truly devoted, a string of lovingly curated youtube clips posted up your fans – bears shining testament to their colossal achievement. The music gathered on The Time Has Come doesn’t sound as good as it did back in the day – it sounds better. In a world where music fans no longer stick to what they know – where you iPod serves to show the world just how eclectic you are – Pentangle sound like they were built for these times. It was a point underscored when the group reconvened to receive a lifetime achievement gong at the BBC Radio 2 Folk Awards in February 2007. Hearing their music in that context – as vibrant, as forward-looking, as alive with possibilities as that made by award-winners half their age – was little short of revelatory. But then, if you know Pentangle, if you’ve lived with Pentangle, you’ll know this anyway. And if you haven’t - if this is your point of entry - then welcome aboard. Everything you’ve ever loved about music is contained here.

Pete Paphides, Chief Rock Critic, The Times

 

 

publicado por adignidadedadiferenca às 20:20 link do post
13 de Abril de 2016

 

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Se há razões para recear que o jazz se converta brevemente numa língua musical morta, também se descobrem paradoxalmente vestígios de grande vitalidade. Com efeito, Michael Formanek, uma das vozes mais originais e estimulantes do jazz contemporâneo, autor de um curto mas valioso percurso musical, juntou-se desta feita ao Ensemble Kolossus para renovar de forma simultaneamente equilibrada, rigorosa e exuberante o conceito e a escrita das grandes orquestras de jazz, ampliando o percurso estético percorrido pela meritória Maria Schneider Orchestra. Recolhendo o melhor da tradição e contextualizando-a no mundo do jazz contemporâneo, a exímia formação liderada pelo contrabaixista, configurando em The Distance uma formidável gestão do tempo e do espaço, reinventa e desenvolve um ambiente de grande unidade e diversidade harmónica, rítmica e melódica, no qual convivem naturalmente peças de sublime e tocante melancolia, em contraponto com outras de puro divertimento, hipnóticas ou alucinadas, mas sempre enérgicas, inventivas e arrebatadoras.

 

 

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