Na admirável filmografia de Nicholas Ray estão presentes, na sua essência, uma sensação de perda e de dor magoada dos seus heróis, as personagens emocionalmente desmedidas, o conflito de gerações e as suas relações demasiado humanas, obsessivas e tormentosas. Mas não só, pois a sua obra transmite amiúde uma dimensão trágica, cruel ou confessional, assombrosamente ampliada pelo delírio pungente do cinemascope, corolário estética de uma visão artística fulgurante e personalizada, concretizada numa exploração profunda da vida enquanto experiência humana íntima e irrepetível. Em síntese, o tipo de cineasta cuja obra, atravessando múltiplos géneros, só ganha em ser avaliada no seu conjunto, mesmo os seus filmes mais desequilibrados ou imperfeitos. O modelo (neste caso) tão justamente venerado pelos defensores da política de autores. Numa carreira ilustrada por uma série assinalável de momentos significativos – tais como In a Lonely Place, On Dangerous Ground, The Lusty Men, Johnny Guitar, Rebel Without a Cause, Bitter Victory ou Party Girl – Bigger Than Life (Atrás do Espelho, com James Mason no papel principal) é um dos mais inesquecíveis e celebrados. Filme soberbo sobre a transição da ansiedade à opressão, Bigger Than Life, na sua lucidez e plena expressividade, tem muitas razões para ser louvado. Uma das menos recordadas, como bem assinalou François Truffaut no seu Les Films de Ma Vie, consiste no modo como Ray «desmontou as relações de um intelectual com a sua esposa».
Passo-lhe definitivamente a palavra: «as relações de um intelectual com a sua esposa, mais simples do que ele, surgem desmontadas com uma lucidez e uma franqueza quase aterradoras. Sim, pela primeira vez, é-nos mostrado o intelectual em casa, na sua casa, na sua intimidade, seguro pela superioridade do seu vocabulário, tendo a seu favor a dialéctica, face a uma esposa que sente as coisas, mas renuncia a dizê-las por não possuir a mesma linguagem. Como muitas mulheres, é fundamentalmente intuitiva e comandada pelo seu amor e sensibilidade. Cinquenta variações deste tema fazem de Atrás do Espelho, independentemente do seu carácter excepcional, um excelente retrato do casamento.»