Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust
Agora que estou quase a terminar o segundo volume de «O homem sem qualidades» do escritor austríaco Robert Musil, um dos nomes do quarteto revolucionário na prosa do início do século XX (servindo-me das palavras de João Barrento) – formado por Marcel Proust, James Joyce, Franz Kafka e, obviamente, Musil -, chegou o momento de recordar neste espaço aquele que considero o mais extraordinário romance escrito durante o século passado: os sete volumes que dão origem a «Em busca do tempo perdido», esse fresco monumental da sociedade daquela época.
Narrado por Marcel (nome que nos é divulgado, quase se poderia dizer, de forma acintosa apenas por duas vezes em toda a narrativa), «Em busca do tempo perdido» descreve as histórias do amor obsessivo de Charles Swann por Odette, com quem acaba por casar, da filha Gilberte (a primeira paixão de Marcel) por Saint-Loup, amigo do narrador, e, finalmente, da inadjectivável Albertine, que mantém com Marcel uma longa, tormentosa e complexa relação que acaba em fuga e morte dela.
Tudo, mas mesmo tudo, é prodigioso neste romance, desde a forma intensa como autor revela o seu talento no traço impressionista e nas tonalidades que imprime ao sofrimento e aos ciúmes que caracterizam os vários protagonistas, atingindo o seu esplendor descritivo na composição da relação irónica, trágica e obsessiva que Marcel vive com a amada Albertine. Nunca uma personagem passou por tanta dor, ciúme, erotismo e traição em busca daquilo que considera o tempo perdido de Albertine.
Proust constrói a história com um dos mais ricos e variados punhados de personagens de que há memória: cómicos, irónicos, extremamente vivos, ciumentos, obsessivos e evasivos que são o espelho fiel da sociedade francesa de então – desde finais do século XIX até aos anos vinte do século seguinte.
Os recursos utilizados pelo célebre escritor brilham intensamente através da perfeita composição e do destino «certo» dado às personalidades que fazem parte da história e que são tratados com tanta humanidade , sem esquecer os grandes temas que atravessam todo o romance. Nele se fala da amizade, da estética e da beleza, do anti-semitismo, do mar, do tempo, da memória e do ciúme (estes três são, sem dúvida, os mais importantes), da literatura, da mentira, do talento do narrrador como romancista, do desejo, da homossexualidade, do sado-masoquismo e dos bordéis. Ter-me-ei esquecido de algum? Todos eles o escritor vai interligando de forma sublime, absolutamente profunda, viciante, inventiva e genial, atingindo a sua expressão máxima no modo como, tantas vezes, nos «diverte» a atormentar e a ferir os seus protagonistas - como se subentende, por exemplo, na quase maníaca investigação que Marcel faz das paixões lésbicas de Albertine, após a sua morte -, e, ao mesmo tempo, as trata de maneira tão divina.
Mas são apenas exemplos, nada mais do que isso, de um universo criado com uma atitude tão ousada e perturbadora que significa, para mim, o mais perfeito e extremo relato das possibilidades que existem numa relação vivida entre seres humanos e o paradigma do romance clássico. E não me estou a esquecer, como poderão pensar, de «Ulysses» de James Joyce. Mas desse outro romance que revolucionou a escrita do século XX, falarei numa próxima oportunidade.