a dignidade da diferença
24 de Março de 2016

 

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«Há uma contradição no génio da literatura russa. De Pushkin a Pasternak, os mestres da poesia e da ficção russas pertencem ao mundo como um todo. Os seus poemas, romances e contos são indispensáveis mesmo quando os lemos em traduções fracas. Sem estas obras temos dificuldade em imaginar o reportório dos nossos sentimentos e da humanidade comum. Com o seu estilo historicamente breve e constrangido, a literatura russa partilha esta universalidade envolvente com a Grécia antiga. No entanto, o leitor não russo de Pushkin, Gogol, Dostoievski ou Mandelstam é sempre um intruso. Está essencialmente a espreitar para um discurso íntimo que, apesar da obviedade da sua força comunicativa e da sua pertinência universal, nem os críticos intelectuais mais experientes e perspicazes do Ocidente conseguem perceber com todo o rigor. O significado permanece obstinadamente nacional e resistente à exportação. Claro que isto se deve, em parte, a uma questão de língua ou, mais exactamente, à desconcertante gama de línguas à qual os escritores russos recorrem, e que vai das formas regionais e populares às formas altamente literárias e mesmo europeizadas. Os obstáculos que um Pushkin, um Gogol, uma Akhmatova põem no caminho da tradução integral são abundantes. Mas o mesmo se pode dizer a respeito dos clássicos escritos em muitas outras línguas, e apesar de tudo, os grandes textos russos conseguem fazer-se entender num determinado plano – na verdade, num plano bastante amplo e revelador.»

George Steiner, in George Steiner at The New Yorker, 2009

06 de Julho de 2014

 

 

Ao citar títulos ficcionados, referências imaginárias, in-fólios e autores que nunca existiram, Borges não faz mais do que reagrupar elementos da realidade na forma de outros mundos possíveis. Ao passar, por meio do jogo de palavras e do eco, de uma língua a outra, faz girar o caleidoscópio, projecta luz sobre uma outra secção do muro. Como Emerson, que infatigavelmente cita, Borges sabe que a visão de um universo simbólico, exaustivamente entretecido, é uma alegria certa (…) Para Borges, como para os transcendentalistas, não há coisa viva ou som que não contenha uma cifra de todos os outros. Este sistema de sonhos (…) engendrou algumas das narrativas breves mais inspiradas e assombrosamente originais da literatura ocidental. «Pierre Menard», «A Biblioteca de Babel», «As Ruínas Circulares», «O Aleph», «Tlön, Uqbar, Orbis Tertius», «A Busca de Averróis» são outras tantas obras-primas lacónicas. A sua perfeição concisa, como a de um bom poema, constrói um mundo que é ao mesmo tempo fechado, com o leitor inevitavelmente dentro dele, e todavia aberto à ressonância mais ampla. Certas parábolas, não mais compridas do que uma página (…) são, ao lado das de Kafka, realizações únicas dessa forma manifestamente frágil. Se nada mais tivesse produzido além das «Ficções», Borges contar-se-ia entre os poucos sonhadores novos desde a época de Poe e Baudelaire. Tornou mais profunda – e tal é a marca de um artista verdadeiramente grande – a paisagem das nossas memórias. No entanto, apesar da sua universalidade formal e das dimensões vertiginosas do seu leque de alusões, o edifício da arte de Borges tem falhas severas. Só uma vez, no conto chamado «Emma Zunz», Borges criou uma mulher verosímil. Ao longo da sua restante obra, as mulheres são vagos objectos da fantasia ou das recordações dos homens. Mesmo entre homens, as linhas de força da imaginação de Borges são restritivamente simplificadas. A equação fundamental é a do duelo.

George Steiner, Tigres no Espelho, ensaio publicado em The New Yorker.

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