a dignidade da diferença
23 de Março de 2014

 

 

No seguimento do texto anterior, relendo o catálogo de Jean Renoir, editado pela Cinemateca Portuguesa, a propósito do centenário do seu nascimento – 1994, ano de Lisboa Capital Europeia da Cultura -, recordo a pouca importância que o cineasta dedicava ao argumento do filme. Segundo ele, numa entrevista a Jacques Rivette, a genialidade de filmes como La Nuit du Carrefour, Tire-Au-Flanc, Le Déjeuner Sur L’Herbe ou Le Testament du Docteur Cordelier provinha da convicção «qu’il nous faut débarrasser du souci de racconter l’histoire. Ou seja, «porque há uma coisa, que não tem nenhuma importância em arte e que é ter uma história. A história não tem importância nenhuma. O que é importante é a maneira como se conta». Mais adiante, Renoir explica melhor: «O que era importante, para mim, era o grande plano. Acontecia que, para engolir um grande plano, o público precisava de uma história. Submeti-me a essa necessidade, mas submeti-me de muito má vontade». Em suma, como exemplo da necessidade de usar uma história com a finalidade de não espantar a caça, não conheço melhor.

18 de Setembro de 2011

 

 

Depois de ter recusado a proposta de Goebbels para dirigir o cinema do III Reich, Fritz Lang realizou em França, antes da partida para a América, este singular, pouco visto e notável Liliom (de 1934). Sob uma aparência ligeira, simpática e festiva, o filme esconde uma profundidade e complexidade que só os espectadores mais atentos terão capacidade para decifrar. Mestre da concisão narrativa – como se veria nos seus filmes americanos – Fritz Lang questiona, como acertadamente referiu Bénard da Costa, a incompatibilidade entre um Deus generoso e um Deus justiceiro. Liliom, constantemente acossado pela punição policial, não tem descanso para lá da morte, permanece a eterna visão do Inferno. No além, continua a ser perseguido pela justiça e a suprema ordem moral utiliza os mesmos procedimentos e burocracia administrativa. Uma ordem moral subvertida, a quem interessa sobretudo os sacrifícios e muito pouco a generosidade – basta, para chegarmos a esta ideia, compreender a cena dos pratos da balança. Inicialmente feérico, impressionista, homenageando o cinema francês e seu grande mestre Renoir, o filme, assim que cresce de intensidade a relação entre Liliom – provavelmente, o papel da vida de Charles Boyer - e Julie, vai-se densificando, escurece, sobe de tensão, provoca pequenas rupturas na relação entre os personagens, até culminar na fundamental oposição entre o lugar onde Liliom se diverte e o espaço policial: falsamente moralista – veja-se a sequência que revela a diferença do tratamento dado a um visitante rico e a um vagabundo - proibitivo e punitivo. Liliom, com uma magnífica fotografia a preto e branco, é, como vimos, uma admirável denúncia da repressão que se manifesta sob a cobertura de uma ideia total de justiça. Vimo-lo ontem à noite numa sala da Cinemateca Portuguesa.

 

05 de Março de 2011

 

Almas Perversas (Scarlet Street), estreado em 28 de Dezembro de 1945, é um remake do magnífico La Chienne, de Jean Renoir. Saiu finalmente em DVD (a boa notícia) numa cópia sofrível (não há bela sem senão). Nele se conta a história de Christopher Cross (interpretado pelo genial Edward G. Robinson), protagonista de uma vida banal na qual transporta o ónus de um casamento infeliz. Mas tudo irá mudar quando conhece Kitty (interpretada por Joan Bennett, fabulosa na densidade que transmite à personagem e na ideia de mal que lhe consegue associar), com quem irá ter uma aventura que o conduzirá ao abismo. Pintor com talento, Cross descobre que Kitty (influenciada por Johnny, o amante) se aproveita dos seus quadros e os vende como se as obras fossem da autoria dela. Porém, crédulo, acredita que o seu amor é correspondido e permite que Kitty goze os louros da fama conquistada, até que perde completamente o controlo quando o mundo desaba à sua volta ao descobrir a traição de Kitty e a paixão desta por Johnny.

 

  

 

Se Jean Renoir aproveita La Chienne para ridicularizar instituições, através de uma análise anárquica e destrutiva sobre as ideias de justiça, trabalho, família ou casamento, Fritz Lang explora assombrosamente o abismo que vai consumir Christopher Cross, abalando irreversivelmente a sua estrutura moral e a sua dignidade enquanto pessoa, e daí constrói, como acertadamente referiu João Bénard da Costa, uma avassaladora meditação moral sobre a solidão, o medo e a culpa, assinando uma das suas obras mais pessoais. Atormentado pelo diálogo Kitty-Johnny, possuído pelo ciúme e pelo desejo de vingança, Cross é atraído por uma força destrutiva que o transforma no assassino de Kitty e no responsável pelo enforcamento de Johnny (suprema perversidade e inquietante ambiguidade de Lang, ao conseguir que ninguém sinta remorsos pela execução de um inocente). Mas a dupla morte de Kitty e de Johnny não sacia o sofrimento de Chris Cross, e o filme termina com a impotente angústia do protagonista; Cross jamais conseguirá calar as vozes do par naquele diálogo que tanto o atormenta.

16 de Fevereiro de 2010

 

Eis o momento ideal para fazer uma pequena pausa e recomendar a escuta de um dos grandes discos do ano passado que, na altura em que saiu, me passou completamente ao lado: Veckatimest dos magníficos Grizzly Bear. Folk psicadélica, pop-rock adulterado e ferrugento em comunhão perfeita com um punhado de sublimes corais de matriz Brianwilsoniana.

Para os meus leitores cinéfilos deixo outra recomendação: acabou de sair uma edição de peso em DVD: mais um clássico absoluto de Jean Renoir. Neste caso French Can-Can, onde o cineasta francês nos deu uma visão admirável sobre o mundo do espectáculo.

 


 

While You Wait For The Others

 

publicado por adignidadedadiferenca às 02:30 link do post
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