a dignidade da diferença
08 de Janeiro de 2008

Num pequeno país como o nosso, onde a atenção prestada à cultura – e às mais variadíssimas formas de expressão artística – é muito pouca, o que esperar da música que se ouve e da música que se faz? Muito pouco, obviamente.

Sim, eu sei que todas as músicas merecem ser respeitadas, porque todas elas preenchem, de uma certa forma, uma parte nada desprezível da vida de cada um de nós (até o documentário «ainda há pastores», transmitido na Sic, mostrou isso de forma veemente, ao descrever-nos a importância que a música de Quim Barreiros tem nas pequenas coisas que compõem o universo dum dos pastores ali retratados). Mas, desafiando quem acena com os mandamentos de um certo relativismo cultural, também será legítimo lamentar quando muitos hesitam perante o que lhes exige uma escuta atenta e privilegiam, quase sempre, a música massificada, uniformizada e expressa de forma indigente. Este gosto (duvidoso) resulta, não por se discordar de determinada corrente ou ousadia estética, mas na opção que se toma, negligentemente, por  música esteticamente desclassificada. Se nem tudo se reduz a música fácil, muito se deve à disponibilidade que alguns vão mantendo para divulgarem as imensas possibilidades e soluções que a música nos pode oferecer. Claro que a melhor música nunca foi feita para toda a gente e acaba, mais cedo ou mais tarde, por chegar a quem  a «merece». Contudo, e a título de exemplo, não deverá o nosso ouvido estar atento às coisas simples, sim, mas onde, lentamente, lhes vamos adivinhando pequenas subtilezas que as vão enriquecendo e matizando? E porquê tanta condescendência para a verdadeira ditadura das «playlists» radiofónicas e para o manifesto desinteresse a que é votado, pelas nossas televisões, qualquer tipo de música construída de forma minimamente original, inteligente e sensível?

Se faltam as escolas e, consequentemente, alunos que, nelas, aprendam, na música popular nem é disso verdadeiramente que se trata. Claro que, com maior quantidade de músicos, mais fácil se torna haver música de qualidade. Mas, na realidade, a melhor música popular nunca dependeu directamente da formação musical dos seus executantes, porque sempre se valeu mais das ideias que da técnica (e bem sabemos o que aconteceu quando o interesse pela execução técnica ficou com a parte de leão. Rock progressivo, diz-vos alguma coisa?). A pecha maior será num âmbito cultural mais vasto. Julgo que a maioria tem, talvez, a noção de que a educação é da única responsabilidade dos pais e acaba com a independência conquistada. Mas não nos fará falta, para uma aprendizagem mais profunda, a música, a literatura, a história, o cinema, a pintura e por aí fora? Caso contrário, do que serão feitos os nossos sonhos e com que coisas ocuparemos o nosso espírito?

Claro que esta mentalidade se transmite, muito naturalmente, para os músicos. Se ao público, em geral, pouco apetece ouvir, aos músicos pouco apetece fazer... Pois bem, e agora, que balanço se deve fazer do ano musical que findou?

Lixo do ano para as canções diabéticas e infantilizadas de André Sardet, para o verdadeiro espírito «natal dos hospitais» do duo formado por João Pedro Pais e Mafalda Veiga e, em menor escala, para o descarado copianço que se faz da música que vem lá de fora.





Do que merece ser recordado, como sempre, a escassez é grande. No género clássico, foi importante a edição integral das canções de Luís de Freitas Branco e a edição da obra «in memoriam Béla Bartók» da autoria de Fernando Lopes-Graça,  interpretada pelo pianista António Rosado, em mais uma louvável iniciativa da câmara municipal de Matosinhos e da Numérica. Na área do jazz, vale a pena rendermo-nos à Orquestra de Jazz de Matosinhos. Para a música popular, destaque primeiro e quase exclusivo para Amélia Muge e «não sou daqui». Música portuguesa cada vez mais música do mundo. Ainda, e de novo, a melhor voz nacional, e a mais-valia de ter, entre o muito bom que é tudo o resto, três canções absolutamente espantosas: «entre o deserto e o deserto», «na noite mais escura» e «transparência» a fazer lembrar (muito) a clareza e gravidade de June Tabor (estarei a delirar?). Na música pop/rock, depois das surpresas de 2006, vindas dos München e dos Garoto que nos trouxeram uma leve brisa com sabor – entre outros - a Mler ife dada, tivemos mais um óptimo álbum dos Clã. Demonstração clara e inequívoca de que música pop de efeito imediato não deve menosprezar a sofisticação e a certeza de aqui residir (o que já todos terão reparado) a descendênca directa de Sérgio Godinho. Até nem é de espantar, pois é dos Clã que têm vindo alguns dos alfaiates que confeccionam os fatos que as suas últimas canções vestem quando precisam de sair à rua para se mostrar. Bastante bom é, também, o último trabalho de Jorge Palma. Repleto de equilibradas e clássicas canções de travo romântico cheio de bom gosto, o músico quase se esquece dos excessos que o têm penalizado bastante. Claramente, o melhor disco da sua longa carreira, a que o público, surpreendentemente, aderiu de forma incondicional. Referência, ainda para o muito bom disco dos Chuchurumel. Música tradicional feita com as ferramentas e com a sensibilidade dos dias de hoje, o que a torna, simultaneamente, numa música ainda não escutada e com visão do futuro. Quase fez esquecer o bonito primeiro disco das Xaile cozinhado com temperos de vários continentes. Dos Chuchurumel é, ainda, uma das canções do ano: «coquelhada marralheira». A pacatez de trás-os-montes esventrada literalmente por um abrasador bandolim eléctrico. Nota final para Cristina Branco que gravou mais um magnífico álbum com versões de José Afonso, o que, nela, já não surpreende, porque dela se espera tudo. Disco interessante o de Mazgani, de quem, contudo, depois do que li, esperava mais e incompreensão absoluta para o coro de elogios dedicados a David Fonseca e aos Wraygunn. E uma falta que não (me) perdoo: esqueci-me de ouvir JP Simões, de cujo passado gosto especialmente, seja nos Belle Chase Hotel, seja no Quinteto Tati.

 

E, se a memória não me atraiçoa, nada mais resta. Que saudades da fervilhante pop lusa dos anos 80 e primeira metade dos anos 90 e das constantes novidades que emergiam da música de raíz tradicional, construídas com personalidade e, nalguns casos, com um pé bem fincado no futuro.

E agora, um pouco de fel. Em 2007, prosseguiu a trágica história de Fausto Bordalo Dias, com a publicação de mais uma retrospectiva discográfica. É impressão minha, ou ele tem editado mais colectâneas do que discos originais? Eis nova prova documental do caso, dificilmente explicável, de um músico talentoso que é, uma vez mais, desperdiçado na construção de canções persistentemente aborrecidas, enfadonhas e, cada vez, mais iguais umas às outras. O que já acontecia com a publicação de «por este rio acima» ainda hoje, na minha modesta opinião, o mais sobrevalorizado álbum de música popular portuguesa. Porque será que o engenho de Fausto só se manifesta, de forma imaginativa, quando participa em obra alheia?

E não me quero despedir sem maldizer todos aqueles que não prestaram a devida vénia ao grupo que, justamente, os portugueses deveriam estar a ouvir: The National. Publicaram este ano «boxer» que é, apenas, o mais extraordinário e poético disco do ano.

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