a dignidade da diferença
10 de Julho de 2014

 

 

A estreia de Suzanne Vega, com o álbum homónimo de 1985, consiste numa combinação peculiar da estrutura elementar de uma folk nua e minimalista com a geometria, a clareza e a precisão microscópica das suas short stories, nas quais sobressai uma análise simultaneamente detalhada e concentrada da realidade. Solitude Standing e Days of Open Hand trazem a dinâmica e a energia pop para o corpo das canções. Em 1992, com o portentoso 99.9 F°- um dos raros álbuns verdadeiramente essenciais da música popular contemporânea -, Suzanne Vega, auxiliada pela produção cirúrgica de Mitchell Froom, enriquece a paleta sonora e amplia os seus horizontes musicais, coabitando no seu interior, entre outros, o universo estético de Leonard Cohen, Lou Reed, Laurie Anderson e Tom Waits. A matéria das canções estende-se e adquire uma maior nitidez e expressividade. Nine Objects of Desire evolui nesse sentido e dedica a mesma atenção ao vocabulário da canção. Songs in Red and Gray (de 2001) equilibra de forma notável a aparente contradição entre a crueza dos textos e melodias sedutoras. Em 2007, porém, a autora norte-americana dá um primeiro passo em falso com o pouco inspirado Beauty and Crime. Por sua vez, o recente e vibrante Tales From the Realm of the Queen of Pentacles recupera a vontade de experimentar textos e decompor intrincadas texturas melódicas e harmónicas, eliminando os infundados receios de esgotamento criativo determinados pelo álbum anterior. Esse último trabalho e uma actuação cheia de garra na noite fria do EDP Cool Jazz, em Oeiras - cuja tensão eléctrica encaixou naturalmente nas óptimas e concisas canções da autora norte-americana - vieram provar que ainda não escoou o seu prazo de validade.

15 de Setembro de 2013

 

 

Confesso que a música dos Everly Brothers nunca me agradou especialmente. Demasiado agarrada ao espírito da época, consistia numa preocupação excessiva com as harmonias vocais, amparadas em bonitas mas algo inócuas melodias e demasiado presas a um conceito estético despropositadamente pueril e juvenil, inconsistente e por desenvolver. Bonnie ‘Prince’ Billy e Dawn McCarthy – que criou, com Nils Frykdahl, os excelentes e praticamente desconhecidos Faun Fables –, recolhendo os ensinamentos da pop/folk profunda e clássica dos anos sessenta e setenta; a dos Jefferson Airplane, dos Steeleye Span e, especialmente, da trupe dos Fairport Convention (com Sandy Denny e Richard Thompson à cabeça), pegaram nas canções menos conhecidas que os Brothers criaram ou apenas interpretaram, e releram-nas sob uma nova perspetiva. Descobriram e associaram-lhe novos elementos sonoros, modificaram-lhe as arestas, pesaram e ampliaram-lhe o volume e desenvolveram a sua carga dramática, transformando quase milagrosamente as características exageradamente açucaradas da matriz original – indicada para duplas do género Simon & Garfunkel, uns anos antes de mudarem o curso da história da música pop, com as magníficos Bookends e Bridge Over Troubled Water –, num conjunto soberbo de peças musicais densas, elétricas, inesperadamente livres e amadurecidas. Ao disco chamaram-lhe apropriadamente What the Brothers Sang.

 

 

04 de Julho de 2013

 

 

A juventude de Marling ou a veterania de Parks. A instrumentação quase elementar da primeira ou o requinte orquestral e a maestria dos arranjos do segundo. A folk intensa e concisa de Laura Marling ou as sinfonias de bolso de Van Dyke Parks. Se a ideia parece consistir no confronto entre estes dois estilos de música aparentemente tão antagónicos, esse raciocínio está, porém, bem longe da verdade. Entre o percurso musical com origens na tradição folk, o crescimento precoce, a concisão, a clareza, a economia de meios, as emoções que jorram da matéria ficcional, o brio e a expressividade vocal de Laura Marling ou a sabedoria e a visão panorâmica, cinematográfica, majestosamente orquestral - na qual todas as peças se encaixam brilhantemente numa estrutura musical ilusoriamente fragmentada - do magnífico e injustamente pouco celebrado Van Dyke Parks, não é necessário optar: o melhor é escolher os dois. Escutem então (sem pausas) as suas mais recentes e meritórias gravações; o depuradíssimo e intenso Once I Was An Eagle de Laura Marling e o versátil e colorido Songs Cycle de Van Dyke Parks.

 

 

publicado por adignidadedadiferenca às 22:59 link do post
13 de Novembro de 2011

 

 

Laura Marling é, com apenas 21 anos de idade, uma das mais expressivas e talentosas songwriters da actualidade. Umbilicalmente ligada à cena nu-folk londrina – seja lá o que isso for –, Laura Marling possui, desde já, um domínio perfeito da estética folk, cuja formação musical se desenvolveu, segundo a própria, através da escuta persistente das colecções de discos que os pais detinham. Herdeira da melhor tradição folk dos anos 60 e 70 do século passado e sobretudo do génio emocional transcendental de Judde Sill e de Leonard Cohen, filtrado por micro-explosões eléctricas que, em regime de usufruto simultâneo, coabitam com suaves melodias de feição acústica esventradas pelo cinismo e pela mordacidade dos seus (quase todos) magníficos textos, Laura Marling confirma, depois do anterior e igualmente notável I Speak Because I Can, um talento precoce que constrói um dos mais pessoais, emocionais, inventivos e intensos percursos musicais da actualidade, assente no entendimento correcto do uso que deve dar à sua voz como elemento adaptável às necessidades básicas da canção, acompanhado pelas enxutas, certeiras, maleáveis, tensas e sujas orquestrações instrumentais que dedicam uma especial atenção ao espaço, ao volume e à tonalidade. Um talento precoce que contribui para a consagração merecida daquele que, como vimos sublinhando há vários meses, deverá consagrar-se como o ano musical das mulheres, na medida em que ainda temos para acrescentar o regresso de St. Vincent, a dose dupla de June Tabor (desta vez com a Oyster Band, num registo folk-rock que perdeu o acento tónico que Freedom and Rain pôs no punk mas é igualmente brilhante) e o novo trabalho da magnífica Shara Worden (My Brightest Diamond).

 

publicado por adignidadedadiferenca às 00:50 link do post
03 de Abril de 2011

 

Eis aquela que é, quanto a nós, a discografia essencial de June Tabor - e ainda ficam de fora, pelo menos, os excelentes Aqaba, No More to the Dance (Silly Sisters) e Apples -, a mais extraordinária cantora britânica da actualidade. Musical e geograficamente situada algures entre a folk clássica, a tradição europeia, o renascimento e a literatura medieval, June Tabor abraçou não raras vezes a pop e cantou os seus mais extraordinários autores, criou, com Maddy Prior, as notáveis Silly Sisters, aderiu episodicamente ao exuberante festim punk da Oyster Band e - não há bela sem senão - não se deu assim tão bem com o jazz. Deixa-nos uma obra valiosíssima, uma verdadeira quimera, cujo capítulo mais recente - o devastador Ashore - é uma das suas jóias mais preciosas. O universo de June Tabor é o de uma excelsa e tradicional contadora de histórias; não procurem aqui o último grito da moda, nem os sintomas da mais recente novidade, pois o que encontram é a intemporalidade de uma voz grave, densa, majestosa - ultimamente acompanhada por um rigoroso, expressivo e luminoso ensemble instrumental -, tão essencial como o ar que respiramos. Experimentem, depois de a escutar, passar sem esta música.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

publicado por adignidadedadiferenca às 16:37 link do post
01 de Novembro de 2010

 

E aqui começo uma nova rubrica intitulada “pequenas ficções musicais” dedicada, nesta primeira vez, à música sublime das Unthanks - todas as canções convocadas são do último e magnífico disco "Here's the Tender Coming" -, novo paradigma para a música folk britânica, da estirpe de gente ilustre como June Tabor ou Richard Thompson. Cumpre-se, essencialmente, duas funções: a de dar mais espaço à música que aprecio particularmente, assim como a de manter acesa a chama do blog, especialmente nestes momentos em que se torna tão difícil a gestão do tempo.

 

 

Sad February

 

Lucky Gilchrist

 

Annachie Gordon

 

Here's the Tender Coming

 

publicado por adignidadedadiferenca às 19:23 link do post
15 de Agosto de 2008

 

Faun Fables

 

Rectas e semi-rectas de folk contemporânea, arestas limadas por teatro pagão, música tribal, dramática e transparente. Tangentes à música do leste da europa aquecida pela etnia cigana e trespassada pela loucura visionária de uns quantos aventureiros das décadas de sessenta e setenta. Pelo menos, Tom Waits, Zappa e Beefheart (será, ou já estarei a ouvir vozes?). O regresso dos Hugo Largo e dos Jefferson Airplane devidamente triturados pela música erudita e de cabaret. Adições, subtrações. multiplicações e divisões feitas, o que resta?

 

Música inclassificável, diferente de tudo o que se ouve hoje em dia - e nem cheguei a falar da mise-en-scène espectral de Nico, nem do gelo trazido de «I want to see the bright lights tonight» - e, para a história, duas obras-primas e, para já, uma canção inadjectivável: Taki Pejzaz

 

 

 

 

publicado por adignidadedadiferenca às 01:26 link do post
05 de Agosto de 2008

  

Véranda (1990) - Riccardo Tesi/Patrick Vaillant

 

 

 

 

De Riccardo Tesi já conhecia o óptimo Il ballo della lepre, publicado sensivelmente na mesma altura (já tive o disco, mas juro-vos que não sei o que lhe fiz) e onde Tesi já explorava de forma personalizada e profunda as imensas potencialidades do acordeão – cada vez que o ouvia apetecia-me acabar de vez com todos os ranchos folclóricos deste país!

Mas foi em Véranda e com a cumplicidade de Patrick Vaillant e de outros músicos (Baniel Malavergne, Sandy Rivera e Michel Marre) que a arte de Tesi atingiu o seu cume. Não só pelo extraordinário virtuosismo técnico que o músico Toscano exibe como meio de expressão artística e nunca como vil demonstração exibicionista, mas, sobretudo, pela articulação notável entre a inspiração folk e tradicional de Riccardo Tesi e a subtil introdução de elementos jazzísticos, de música de câmara, algum rock ou música contemporânea de feição minimalista (Steve Reich, Wim Mertens) que conferem a esta música sublime um toque bem vincado de modernidade.

E, como se não fosse já suficiente, ainda adicionam os mais variadíssimos instrumentos – tuba, vibrafone, mandolim, trompete, percussões, etc  -, que, através da exploração das suas componentes harmónicas e tímbricas, estendem esta música para uma dimensão incomparável. Um disco belíssimo e discretamente inovador, cuja sinopse assenta bem na assombrosa Tricot Marin: música de autor, exuberantemente livre e abstracta, exibindo-se num plano estético superior, bem longe de quaisquer catalogações ou tentativas de formatação.

 

Tricot Marin

publicado por adignidadedadiferenca às 23:54 link do post
29 de Maio de 2008

I want to see the bright lights tonight - Richard and Linda Thompson (1974)

 

 

O mais perfeito e solitário dos discos que Richard Thompson gravou com a sua mulher Linda.

Melodias memoráveis e intemporais nas vozes sublimes de Linda (só comparável a Sandy Denny e June Tabor) e Richard Thompson desaguam fatalmente em canções fundas e sem remédio, atingindo em «Has he got a friend for me?»  e «The end of the rainbow» o limite suportável da tragédia humana.

Tanta dor e crueldade, aparentemente, parecem apenas destinadas a ouvidos tão habituados ao sofrimento que este já não lhes provoca qualquer tipo de reacção, não é assim? Errado, perfeitamente errado.

O milagre sonoro é de tal ordem que as canções, inequivocamente sombrias e devastadoras, surgem, num último fôlego, matizadas pela excelência da interpretação e pelo rigor musical que, servindo-se de uma paleta instrumental maioritariamente tradicional, encontra, de uma forma densa e penetrante, soluções ricas e inesperadas para todas as equações, recebendo, inesperadamente, uma vida nova e um colorido sonoro portentoso que as salva do abismo e nos convoca para mil e uma chamadas.

Obra-prima inclassificável.

 

 

. 

The end of the rainbow

 

the great valerio

 

withered and died

10 de Maio de 2008

Hedningarna (discografia de 1992 a 1994), os anos em que a Escandinávia tomou conta, musicalmente, do resto da Europa

 

Depois do(a)s Varttina chegou a vez de cumprirmos a promessa. Dos vizinhos do lado, veio uma ambição claramente mais futurista, acompanhada pela loucura da transgressão e da inovação.

Maquinaria electrónica, instrumentos criados no momento para dar corpo e resposta às ideias do grupo, que passavam por uma fase de constante ebulição.

E para o fim fica, talvez, o mais importante: O respeito (ainda) pela tradição, apesar do inacreditável carregamento explosivo e a certeza de termos sentido, pelo menos em «Kaksi!», o espírito de Jimi Hendrix a pairar sobre todas as músicas (e no concerto que deram em Algés, a espremer a gaita-de-foles de Anders Stake).

 

A tradição virada do avesso por uma atitude rock'n'roll - também lhe chamaram pós-punk - em comunhão perfeita com uma perspectiva de fim de milénio (que se aproximava, inevitavelmente).

 

Resta falar da extraordinária semelhança entre o conjunto de vozes femininas, verdadeiramente viciantes, e ainda a mesma celebração - quase como se se tratasse de um ritual -, que ambos os grupos sentiam pela música e pela vida.

Se foram concebidos na sua terra natal, tanto os álbuns das (ou dos) Varttina como os dos Hedningarna, atravessaram todas as fronteiras existentes na folk e deram expressão real ao conceito «música do mundo», que, a partir de então, nunca mais foi o mesmo.

 

 

publicado por adignidadedadiferenca às 00:12 link do post
03 de Maio de 2008

É aqui que eu venho encher os pulmões de ar puro quando estes já não aguentam o caos urbano naquele que é, para um ateu confesso, o único encontro possível com o divino.

 

 

 

O exemplo tanto podia vir de «A quiet eye», como de «Angel tiger»,  de «Rosa mundi», de «Against the streams» ou dessa imensa e definitiva caixa de 4 cds que tem por título «Always» e que, por entre inéditos e raridades, resume na perfeição toda a carreira da primeira dama da folk britânica. Esta é, contudo, uma definição demasiado redutora para a dona de uma voz prodigiosa que, como ninguém, parte da tradição para, apoiando-se apenas nas partículas que julga essenciais para desenhar uma melodia, nos dar uma visão universal e intemporal do silêncio que se ouve, respira e vem da natureza.

publicado por adignidadedadiferenca às 02:05 link do post
27 de Abril de 2008

Run to ruin - Nina Nastasia (2003)

 

 

 

Depois de «Dogs» e «The blackened air», a arte de Nina Nastasia surge refinada em todos os seus pormenores. Um canto fúnebre, falsamente doce e impossivelmente tenso, encaixado em melodias que de tão sinuosas e transviadas que são, parecem sobreviver fragmentadas e, aparentemente, à deriva, e que tem para nos oferecer uma quase oração cujas palavras têm o peso mais profundo que uma alma negra e esquizofrénica pode habitar. Prejudica um pouco a empatia com as canções, quando julgamos ser todo o suporte instrumental exageradamente rude, cru e desarrumado, até nos apercebermos que, afinal, os sons artesanais criam uma ambiência folk  irresistível e venenosamente melódica onde, afinal, tudo está no sítio certo. Desde o ruído das serras eléctricas, aos gemidos de um doente em estado terminal, sem esquece a dissonância, as explosões e os sussurros até aos cortes brutais a golpes de machado. Neste universo, convive-se, sem perigo, com pedaços de tango, sublimes arranjos de cordas, espasmos e murmúrios de violinos, atingindo os seus pontos altos na intensidade dramática de «You her and me» e nessa prodigiosa música de câmara que é «Superstar». Não haveria Nina Nastasia se não tivessem aparecido P. J. Harvey, Aimee Mann, Suzanne Vega, Laura Nyro e, talvez, Carla Bozulich, mas criou um universo tão pessoal, que já não precisa delas para coisa nenhuma. 

 

 

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