a dignidade da diferença
12 de Agosto de 2015

A propósito da posição dos credores e do comportamento do clube dos virtuosos nas operações de resgate das dívidas soberanas dos países do sul da Europa, bem como da sua superioridade moral na imposição de condições na zona euro previsivelmente irrealizáveis, assente sobretudo nas críticas apontadas à conduta dos países devedores, ou ainda o modo elaborado sobre como se ganha com o financiamento das dívidas públicas e com as crises dos outros, vale a pena recordar, no plano moral, este significativo episódio retirado do magnífico A Família Golovliov, do escritor russo Saltykov-Shchedrin, clássico absoluto da literatura do século XIX que - na opinião do crítico James Wood - se vai tornando, pelas suas estranheza e rugosidade, cada vez mais moderno com o decorrer do tempo. E depois venham-me cá dizer que não está tudo na literatura…

 

a família golovliov.jpg

 

«”Então, meu amigo, que tens tu a dizer-me?”, começou Porfírio Vladímiritch. “Olhe, senhor, queria um pouco de centeio…” “Como? Já comeste o teu todo? Ai, ai, que pecado! Se bebesses menos vodka e trabalhasses mais, e rezasses mais a Deus, a terra havia de sentir! Onde hoje colhes um grão, podias colher dois ou três! E não tinhas precisão de pedir emprestado!” Foka sorria irresolutamente em vez de responder. “Julgas que Deus está longe e não vê?”, continuou Porfírio Vladímiritch a moralizar. “Ah, mas Deus está aqui mesmo! Ele vê tudo, ouve tudo, só parece que não. Deixa os homens viver por si a ver se se lembram d’Ele. E nós aproveitamo-nos, e em vez de pouparmos para uma candeia… é para a taberna, para a taberna! É por isso que Deus não lhes dá centeio. Não é bem assim, amigo?” “Já se sabe! É bem verdade!” “Já vês, agora compreendes. E porque compreendes tu? Porque Deus te retirou a graça. Se Deus te tivesse dado uma boa colheita, andarias por aí cheio de vento, mas assim Deus…” “È verdade, e se nós…” (…) “Agora como vens pedir-me centeio, é certo que estás todo amável e respeitoso, mas no ano passado, lembras-te, quando eu precisava de ceifeiros e fui pedir um favor aos teus mujiques: (…) Disseram que tinha a vossa própria ceifa! Hoje, disseram, não é como dantes em que tínhamos de trabalhar para o senhor, hoje somo livres!” “São livres mas não têm centeio!” Porfírio Vladímiritch olhou professoralmente para Foka, mas aquele não se mexeu, como entorpecido. (…) “Então dizes que querias centeio?” “Sim, se…” “Queres comprar?” “Comprar? Queria um empréstimo até à ceifa…” “Ai, ai, ai! Hoje em dia o centeio está muito caro. Não sei o que devo fazer contigo…” (…) “Gostava de te ajudar, mas o centeio está muito caro…” “Está bem, meu amigo, está bem, dou-te algum centeio de empréstimo”, disse ele (…) “Hoje tenho fartura, toma, leva de empréstimo. Queres quatro sacas – leva quatro. Precisas de oito – carrega-as.” (…) “Que quantidade queres tu de centeio?” “Quatro sacas, já que é tão bondoso.” “Está bem, quatro sacas, mas aviso-te desde já: o centeio está muito caro hoje em dia, meu amigo, caríssimo. De maneira que fazemos assim: eu dou-te quatro sacas e dentro de oito meses tu devolves-me seis – assim as contas ficarão certas! Não te levo juros, mas só centeio…” (…) “Não será de mais, senhor?”, perguntou, por fim, visivelmente tímido. “Se é de mais, vai pedir a outro. Eu não te obrigo, meu caro. Ofereço do coração. Não te mandar chamar, foste tu próprio que vieste ter comigo. Fizeste-me um pedido, eu acedi.” (…) “Pois claro, mas não é pagar muito?” “Ai, ai, ai! E eu a pensar que eras um mujique sério e honrado! Então diz-me cá, de que é que esperas que eu viva? Como vou eu cobrir as minhas despesas?” Em resumo, apesar das voltas de Foka, o assunto resolveu-se como queria Porfírio Vladímiritch.»

23 de Julho de 2014

 

 

Notícia de hoje do jornal i: «Dívida portuguesa continua a distanciar-se da média da Europa. Em 2013, a dívida pública portuguesa correspondia a 127% do PIB. Em 2014, a dívida atinge os 132% do PIB». Chegou porventura a altura de reconhecer o fracasso desta política de austeridade. Por mais radiografias e electrocardiogramas que façam, os nossos governantes não conseguem encontrar uma solução nem um ponto de equilíbrio que permita ao Estado ser menos gastador e, simultaneamente, o crescimento económico. Infelizmente, como vimos pelos exemplos passados, a dívida pública tem crescido sempre, haja ou não austeridade. Não obstante se tratar de um inquestionável lugar-comum, não será cada vez mais urgente renegociar/reestruturar responsavelmente a dívida pública com os credores? Mas isto apenas para começar. Porque depois falta resolver alguns dos problemas mais inquietantes que atingem a sociedade contemporânea. Como aumentar, por exemplo, o emprego num sector laboral que, por força da evolução tecnológica, prescinde sucessivamente de um número crescente de trabalhadores? Ou como tornar a economia competitiva, sem empobrecer os cidadãos, quando esta tem de concorrer num mundo globalizado no qual a mão-de-obra maioritária é contratada em condições muito próximas do limiar da escravidão? Já sem falar noutras questões, sobretudo as culturais e educacionais. Os seus resultados serão menos imediatos, mas continuam a ter uma importância vital para lutar contra o subdesenvolvimento num futuro mais longínquo. É que o abismo é já ali…

publicado por adignidadedadiferenca às 16:32 link do post
16 de Agosto de 2013

 

 

Começa a ser insustentável a ideia apresentada pelos nossos governantes de que a atual crise da dívida pública resulta do facto de os portugueses andarem nestes últimos anos a viver e a gastar acima das suas possibilidades. Dois livros recentes procuram demonstrar precisamente o contrário; Da Corrupção à Crise, de Paulo de Morais, e Os Privilegiados, do jornalista Gustavo Sampaio. Se o compararmos com as intervenções públicas na televisão do seu autor, o primeiro trabalho é, contudo, uma rotunda desilusão. Populista e demagogo, o antigo vice-presidente da Câmara Municipal do Porto usa e abusa de um estilo excessivamente incendiário e acusatório, recorrendo por diversas vezes a insinuações mais ou menos vagas e genéricas, tirando daí conclusões que na sua maioria não se afastam de meros lugares comuns ou de chavões gastos, repetidos e vazios na sua essência. Os políticos são todos uns corruptos, bandidos e ladrões. Trata-se de uma análise bastante rudimentar da nossa classe política, pecando por uma manifesta falta de profundidade. O que se lamenta, pois Paulo de Morais aponta, por vezes, o dedo às pessoas certas e denuncia com eficácia situações concretas. Mas, infelizmente, cai demasiadas vezes num estilo típico das conversas corriqueiras de café ou numa linguagem intencionalmente polémica que nos habituámos a ver em pasquins do género do Correio da Manhã. Enfim, um livro bastante sofrível que poderia fazer muito mais pela denúncia de uma certa casta política. Bastante superior é a notável obra do jornalista freelancer Gustavo Sampaio.

 

 

Os Privilegiados consiste num magnífico trabalho de investigação sobre o regime das incompatibilidades e o conflito de interesses na Assembleia da República, sobre o trânsito de ex-políticos para as administrações de empresas – exemplificando entre as cotadas no índice PSI 20 –, cumprindo ou não o período de nojo (três anos), sobre o Estatuto remuneratório dos titulares de cargos públicos e as Subvenções vitalícias dos titulares de cargos políticos, e sobre as nomeações para cargos dirigentes na administração direta e indireta do Estado, setor empresarial do Estado e gabinetes ministeriais, comparando os privilégios adquiridos pela nossa classe política com os modelos de diversos países europeus. Se o livro não fornece especiais novidades a quem anda bem informado, oferece, porém, com a sua rigorosa contextualização e sistematização, uma portentosa visão panorâmica sobre a promiscuidade existente entre o mundo da política e as atividades económicas e financeiras, a conexão entre as funções públicas e os interesses privados, o tráfico de influências ou a escandalosa rede de interesses convergentes entre a classe política, as empresas públicas e os negócios privados. Concretizando a crítica no lugar de a generalizar, como propõe de resto o seu autor, Os Privilegiados distingue os maus políticos daqueles que servem efetivamente a causa pública e deixa o leitor munido de suficiente informação para tomar a liberdade de pensar e procurar entender quem são os verdadeiros responsáveis pela situação ruinosa a que chegou o nosso Estado. Um livro obrigatório.

29 de Agosto de 2010

 

O grupo parlamentar do CDS quis saber quanto gasta o nosso Governo, anualmente, com as rendas e questionou todos os ministérios que contratos de arrendamento – e quais os valores – foram celebrados nos últimos cinco anos. Nem todos responderam, mas sobre o que se sabe vale a pena reflectir.

O semanário Expresso fez, na edição deste fim-de-semana, uma análise aos gastos do Estado com o arrendamento de imóveis que vendeu a si próprio (!). Para se compreender o estado de completo desnorte a que os nossos governantes chegaram nestas questões de «engenharia financeira», veja-se estes casos exemplares que o semanário conta:

 

 

«Está nesta situação, por exemplo, o edifício da Avenida da República que alberga a secretaria-geral do Ministério da Economia. O imóvel foi vendido em 2008, por €10,7 milhões, à Estamo. Os serviços que lá estavam lá continuaram e, segundo explicou ao Expresso o gabinete de imprensa do Ministério da Economia, está atualmente em negociação um contrato de arrendamento, pelo valor mensal de 69.400 euros (832.800 euros por ano). Feitas as contas, Albino Bessa nota que é um excelente negócio para o comprador: o investimento 10,7 milhões está pago ao fim de doze anos. No Ministério da Agricultura há três casos parecidos: dois imóveis vendidos na anterior legislatura por 5 milhões, e outro por 7,4 milhões, todos comprados pela Estamo. Pelos primeiros, o ministério ficou a pagar uma renda de €33 mil, pelo último paga quase €50 mil. As contas são parecidas: ao fim de doze anos a Estamo recebeu em rendas o valor pago.»

 

 

Ou seja, dentro de doze anos, o Estado gastou o que ganhou e a partir daí, as contas parecem-me fáceis de fazer, o Estado terá mais uma despesa a acrescentar a tantas outras. Trata-se, como é evidente, de mais um caso demonstrativo das vistas curtas e do pensamento a curto prazo de quem nos governa. A factura todos sabemos quem a pagará…

 

publicado por adignidadedadiferenca às 19:31 link do post
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