Jacques Rancière, um dos mais estimulantes pensadores contemporâneos no domínio da filosofia, da história ou da política, manteve uma relação muito próxima com o cinema. Afastando-se do papel de filósofo ou de crítico, é enquanto amante da sétima arte que decide escrever Os Intervalos do Cinema, uma abordagem assaz singular à sua relação com o objeto cinematográfico, definindo-a como um conjunto de «encontros e intervalos entre cinema e arte, entre cinema e política, e entre cinema e teoria». Quando escreve sobre cinema, Rancière exibe a sua vocação, os seus modelos narrativos, a sua relação com a literatura e as suas ambiguidades ou contradições, recorrendo sistematicamente à riqueza e à diversidade dos universos estéticos de autores maiores como Godard, Hitchcock, Rossellini, Minnelli, Vertov, Pedro Costa, Bresson ou Straub (e Huillet). Merece a pena destacar, a título meramente exemplificativo, uma curtíssima passagem da sua prosa, a qual resume bem a relação entre o cinema e a política, assim como a função de cada um deles:
«O cinema não apresenta um mundo que outros teriam de transformar. Faz, à sua maneira, a conjunção do mutismo dos factos e do encadeamento das acções, da razão do visível e da sua simples identidade ensimesmada. É à política, nos seus próprios cenários, que cabe construir a eficácia política das formas da arte. O mesmo cinema que proclama, em nome dos revoltados, “O amanhã pertence-nos”, assinala também que não pode oferecer outros amanhãs senão estes que são os seus. É isto que Mizoguchi nos mostra num outro filme, O Intendente Sansho, que conta a história da família de um governador de província afastado do seu cargo devido à sua solicitude para com os camponeses oprimidos. A sua mulher é raptada e os seus filhos vendidos como escravos para trabalharem numa mina. Para que o seu filho Zushio possa escapar, a fim de ir ter com a mãe ao cativeiro e cumprir a palavra dada libertando os escravos, a irmã de Zushio, Anju, afunda-se lentamente nas águas de um lago. Mas este cumprimento da lógica da acção é também a sua bifurcação. Por um lado, o cinema participa no combate pela emancipação, por outro, dissipa-se em círculos na superfície de um lago. É esta dupla lógica que Zushio irá por sua vez retomar, ao demitir-se das suas funções, uma vez libertados os escravos, para ir ter com a mãe, cega, na sua ilha. Todos os intervalos do cinema podem resumir-se no movimento pelo qual o filme que acaba de encenar o grande combate pela liberdade nos diz, num derradeiro plano panorâmico: - Eis os limites do que eu posso. O resto pertence-vos.»
Jacques Rancière, Os Intervalos do Cinema (tradução: Luís Lima), Ed. Orfeu Negro.