Farmacêuticas da Treta (Bad Pharma, no original), publicado no nosso país pela Editorial Bizâncio e escrito pelo médico e investigador Ben Goldacre, aponta corajosamente o dedo à indústria farmacêutica, focando-se sobretudo no insuficiente registo de dados, na manipulação dos resultados dos ensaios clínicos e nos, por vezes, inadequados períodos de experimentação (demasiados curtos ou excessivamente longos), na deficiente regulação e na pressão exercida sobre os reguladores, destacando ainda outros problemas que merecem ser sublinhados tais como, por exemplo, a aprovação apressada de medicamentos sem estar devidamente comprovada a sua eficácia, a ineficácia comparativa entre diversos tratamentos ou a preocupante promiscuidade entre académicos, médicos e indústria farmacêutica. Um conjunto de situações preocupante, descrito numa linguagem acessível – embora o autor não abdique do rigor e dos pormenores técnicos, quando necessário – o qual desagua no desconhecimento e na insegurança da classe médica no momento de tomar decisões, causando malefícios aos doentes, cujos interesses são prejudicados pelos interesses das empresas e da indústria farmacêutica em geral. Uma das questões que Ben Goldacre não esquece diz respeito ao modo como determinadas pessoas são coagidas a participar nos ensaios clínicos preliminares. Deixo aqui uma fatia considerável do seu comentário sobre o assunto:
«Até à década de 1980, nos Estados Unidos, esses estudos realizavam-se muitas vezes em reclusos. É possível argumentar que, desde então, esse tipo de coacção absoluta terá abrandado, em vez de ter sido totalmente eliminada. Neste momento, ser uma cobaia num ensaio clínico é uma fonte de dinheiro fácil para jovens saudáveis com poucas opções: às vezes estudantes, às vezes desempregados, às vezes muito pior. Decorre uma discussão ética sobre a possibilidade de um verdadeiro consentimento por parte de pessoas seriamente necessitadas e sujeitas a incentivos financeiros consideráveis. Uma situação destas cria uma tensão: os pagamentos aos participantes deverão ser baixos para reduzir quaisquer “incentivos indevidos” a experiências arriscadas ou degradantes, o que, em princípio, parece um bom mecanismo de segurança; mas dada a realidade em que vivem muitos participantes na fase 1, eu preferiria que fossem bem pagos. Em 1996, descobriu-se que a Eli Lilly andava a recrutar alcoólicos sem abrigo num centro de acolhimento local. O director de farmacologia clínica da Lilly disse:
“Estes indivíduos querem ajudar a sociedade.” (…) Segundo a Declaração de Helsínquia, o código ético que enquadra a actividade médica mais actual, a investigação justifica-se se a população de que provêm os participantes vier a beneficiar dos resultados. A ideia subjacente +e a de que, por exemplo, um novo medicamento para a sida não deve ser testado em pessoas de África que nunca poderiam comprá-lo. Mas, nos Estados Unidos, os desempregados, sem seguros médicos, tão-pouco têm acesso a tratamentos médicos dispendiosos, pelo que não é claro que possam beneficiar dessa investigação. (…) O dinheiro é um aspecto central deste processo, e como o pagamento é muitas vezes deferido, a pessoa só o recebe na totalidade se completar o ensaio, a não ser que consiga provar que o abandono se deveu a efeitos secundários graves. Os participantes costumam ter poucas alternativas económicas, sobretudo nos Estados Unidos, e é frequente darem-lhes a assinar formulários de consentimento compridos e impenetráveis, difíceis de ler e de compreender. (…) Os participantes sentem relutância em queixar-se das más condições, porque não querem perder a oportunidade de futuros estudos, e não recorrem a advogados pelas mesmas razões. Também podem não abandonar ensaios desagradáveis ou dolorosos por medo de perder o rendimento. Um participante descreveu isto como “uma espécie de tortura paga”: “Não somos pagos para fazer um trabalho… somos pagos para aguentar”.»