a dignidade da diferença
29 de Março de 2015

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Rara e magnífica associação de música e poesia, Entre Nós e as Palavras, obra gravada em 1995 pelos músicos que constituem o grupo Os Poetas (alguns deles vieram dos Madredeus originais), trouxe para a luz do dia a soberania das vozes e das palavras de verdadeiros poetas: António Franco Alexandre, Al Berto, Mário Cesariny, Herberto Helder e Luísa Neto Jorge. Se provavelmente escapará a poucos que cada um dos poemas já possui naturalmente a sua dinâmica, o seu próprio ritmo, andamento, espaço ou respiração, o grupo encontra neste exercício de articulação com uma música de câmara minimalista, de bela e delicada textura, com as suas pausas e vibrações, os seus compassos, andamentos ou repetições, pretexto para aprofundar o significado das palavras, ampliar a sua dimensão, conferir uma ajustada teatralidade e intensidade, bem como partilhar com o seu semelhante as alucinações e fragilidades, o novelo de fúria e inquietação, a magia e a solidão dos poetas. Um disco único e magnífico, onde sobressai simultaneamente uma diversidade e uma unidade estilística, enriquecendo, por um lado, o vocabulário dos seus autores e evitando, por outro, que este se disperse desnecessariamente.

 

 

02 de Fevereiro de 2015

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Após um primeiro passo rumo à mudança de orientação estética dado com o surpreendente White Chalk, Polly Jean Harvey investe novamente, no opus seguinte - Let England Shake, publicado em 2010 -, num distanciamento progressivo da herança descarnada do punk e do blues que alimentou o capítulo inicial do seu já assinalável percurso musical, o qual atinge a sua máxima expressão na teatral dramatização e na sedutora imoralidade do soberbo To Bring You My Love. Elaborado num contexto de enganador apaziguamento sonoro e reunindo, com uma precisão notável, texto, ritmo e melodia, Let England Shake serve ainda de pretexto para PJ Harvey, em doze envinagrados episódios, fazer a ponte entre o desmedido morticínio da Primeira Guerra Mundial e a hipocrisia política do mundo contemporâneo, nele sobressaindo as extremas elegância, agilidade e concisão da inventiva estrutura musical, desenvolvendo uma combinação inesperada e admirável com a amargura e o terror das magníficas e radicais súplicas verbais. Um disco extraordinário, imprescindível em qualquer discoteca básica.

All and Everyone

09 de Novembro de 2014

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Paris 1919, publicado em 1973, consistia num delicado rendilhado de música sedutora, elegante e, no limite, «invisível». Editado um ano depois, Fear, por sua vez, já trazia consigo a atmosfera de medo, tensão, excesso e claustrofobia que irá perseguir, amiúde, a notável carreira do seu autor. Com Honi Soit, John Cale prosseguia e desenvolvia, em 1981, esse universo de claustrofobia sonora com um conjunto imaculado de canções elaboradas em cenários de fogo e gelo. Ainda assim, apesar desses avisos, poucos seriam os que se prepararam para escutar e digerir, no ano seguinte, o assombroso universo de escuridão, desespero, desorientação, perda e horror, que habitava as canções sedutoramente caóticas do genial Music For a New Society. Contextualizado no seu tempo, pode ser encarado como uma reacção meticulosa e crua aos anos amargos da administração Reagan/Tatcher, funcionando ainda como denúncia ácida e feroz desse período de desencanto, do qual sobressai um mal-estar individual ou até colectivo. John Cale extrai das suas canções - se nos for permitido designá-las ainda desta forma… - o derradeiro sopro de vida, sustentando-as com frágeis fragmentos de melodias à deriva, com acordes lentos e solitários de piano e guitarra, com esboços de viola de arco sussurrados ao ouvido ou lamentos e pontuações emotivas de bateria. Assim configuradas, as peças de Cale, amplamente desfiguradas, sobrevivem inesperadamente num ambiente tortuoso, ambíguo e obsessivo, apelando à absoluta necessidade de mudança. Rigorosamente construído e magnificamente executado, Music For a New Society, não ganhou uma única ruga e perdura ainda hoje como um portentoso exercício sobre a perda, o cansaço, a desorientação e a ansiedade. Exemplo superlativo da arte excessiva do seu autor será a desintegração literal da Ode à Alegria de Beethoven, convertida em Damn Life num assustador pesadelo de dor, solidão e desencanto. Essencial, perturbante, complexo e intenso, Music For a New Society, apesar da sua escuridão, colhe o género de música capaz de destruir vidas e de simultaneamente, ao cantar esses pesadelos, as salvar*.

 

  * Inspirado no comentário dos National ao seu magnífico Boxer, retirado daqui.

29 de Setembro de 2014

 

 

«Tim Buckley possessed a golden voice that spanned the range from baritone to tenor. More importantly, he knew what to do with it. Sometimes he used it simply as a vehicle to carry the lyrics. Other times he used it as an extraordinary musical instrument in its own right. Standing on stage beside him, playing guitar, listening to the compassion, hope, tenderness, anguish, wistfulness, love and power surging through his voice, I often felt my spine shiver with goosebumps. Between 1966 and 1975, Buckley released nine albums. Throughout that time, he sang like nobody else I’ve ever heard.»

Lee Underwood

 

 

05 de Setembro de 2014

 

 

«Maurizio Pollini plays all 18 of these nocturnes (as well as the posthumously published Nocturne op. post. 72 no. 1) in the present record, a decision inspired not only by his wish to offer as complete as possible an account of one particular type of work from the Polish composer’s pen but also, and above all, to demonstrate Chopin’s development within these character pieces and to draw attention to the differences that exist between them: “All of them are of course lyrical in tone, but there are also vast differences between them. This is itself makes a cyclical recording sufficiently interesting – simply because enough contrasts can be heard in them.” Pollini has, of course, been drawn to Chopin’s music ever since winning the prestigious Chopin Piano Competition in Warsaw in 1960: “Once I’d won the Warsaw Chopin Competition, Chopin’s music became a part of my life.” It goes without saying that Pollini is interested not only in bringing out the sense of dramatic development within these pieces but also in the element of bel canto, which in his eyes plays a major role here. But in stressing the importance of this element, he also views it in a broader context.»

Carsten Dürer

 

30 de Agosto de 2014

 

 

Não será fácil recriar a música de um génio da estirpe de Miles Davis. Porém, paradoxalmente, talvez por causa da excelência do seu universo musical, a tentação tem sido grande. Nos melhores exemplos, a reinterpretação cumpre o seu papel; contudo, não obstante o seu brio, nunca consegue suplantar uma música inventada previamente. Mas com Joe Henderson, em 1993, o resultado foi diferente. Observando detalhadamente a anatomia musical de Miles Davis, Henderson assimila integralmente o espírito do mestre, explora as suas formas e substância musicais até ao osso, os seus estímulos, inquietações ou contradições, e tempera-os com uma dose equilibrada e vibrante de lirismo, acuidade rítmica, improvisação, sentido arquitectónico e intensidade melódica. Recorrendo a um quarteto - formado por si, John Scoffield, Dave Holland e All Foster -, Joe Henderson introduz novas e inesperadas gradações na estrutura musical dos standards de Miles - aqui e ali pontuados por uma assinalável contenção sonora, onde nada é supérfluo -, conquista uma liberdade estética que outros não conseguiram, conduzindo-os amiúde até ao mais absoluto silêncio. Decorridas duas décadas, So Near, So Far não ganhou uma única ruga e é, ainda hoje, um álbum rigorosamente essencial.

 

11 de Maio de 2014

 

 

«We were very conscious that we were plunging into rock without any real knowledge of, or experience in, the medium. We had played Cage and Stockhausen, African and Indian music, and I thought we could simply bring all that to rock. But we knew almost nothing about the roots of rock’n’roll. We all improvised, of course, but in a contemporary-music style. In retrospect, creating a rock band with no rock musicians was a bad decision on my part. Still, I considered myself the most eclectic composer on the planet: I was confident that whatever the others couldn’t do I could write. (…) So. The grand experiment… was it just a failure? Certainly it was for us: friendships were destroyed, and the band was hardly a career stepping stone for anyone. But, over the decades, I’ve become aware of a shadow public that thought us mythic, and the current wave of British rock was credited the band with originality and integrity. One thing is certain: we were unlike anything. Before or since.»

Joseph Byrd

 

25 de Agosto de 2013

Lou Reed: New York (1989)

 

 

Após uma longa série de álbuns sofríveis – iniciada após o lendário Berlin (1973), onde os ocasionais excessos orquestrais dificultam, contudo, a sua resistência à passagem do tempo – Lou Reed regressou à boa forma com o exemplar neoclassicismo de New York (1989). Denúncia implacável e consistente dos oito anos de administração Reagan e da sua insensibilidade social, New York é um relato cru da cultura urbana daqueles dias, apontando, num mundo crivado de dúvidas, o dedo ao racismo, à marginalidade infantil ou ao esquecimento dos veteranos de guerra. Incisivo, direto, seco e brutal, Lou Reed recuperou as qualidades evidenciadas num estilo tantas vezes copiado: o canto quase falado, uma engenhosa economia de meios, a superior expressividade sonora, os momentos de tensão quase insuportável ou o formidável talento – cada vez mais apurado – de cronista hiper-realista. Optando por uma estrutura orgânica sistematizada, Lou Reed articula as canções do álbum entre si, submetendo-as a uma unidade temática e criando uma atmosfera densa de música e palavras que irá explorar nos trabalhos imediatamente seguintes; o belíssimo Songs For Drella (construído a meias com o irmão desavindo John Cale) e o genial e negríssimo Magic And Loss. Uma trilogia inadjetivável que não ganhou, até hoje, uma única ruga.

 

 

05 de Março de 2013

 

Intencionalmente despidas da força significativa das palavras e superiormente interpretadas pela Liberation Music Orchestra – fundada em 1969 por Charlie Haden, um dos melhores contrabaixistas da história do jazz -, as canções revolucionárias que preenchem maioritariamente este magnífico The Ballad of the Fallen, de 1983, (onde está a «nossa» Grândola Vila Morena) adquirem, por outro lado, uma dimensão estética assinalável e particularmente inesperada para aqueles ouvidos mais fechados que, regra geral, se preocupam excessivamente com a vertente política e contestatária das canções - cuja importância (e peso histórico) não deve ser, obviamente, afastada - e esquecem a substância musical adjacente. A inesgotável diversidade e a subtileza estilística, o rigor da escrita, o imaginário poético, a singular articulação de diversos registos - cuja aptidão unificadora consegue combinar naturalmente climas tensos criados pela dissonância dos acordes com momentos do mais profundo lirismo -, a capacidade de improviso, o ritmo e a cadência musical, conduzem um conjunto sobejamente conhecido de «canções da rua» rumo a uma nobreza expressiva que lhes acrescenta anos de vida e cuja marca mais distintiva consiste na formidável substituição da eloquente linguagem verbal pela explosiva e complexa gramática musical, ampliando as qualidades musicais que estas canções já possuiam na sua matriz original.

 

17 de Novembro de 2012

 

 

The Velvet Underground & Nico, o hiperclássico da banda originalmente formada por Lou Reed, John Cale, Sterling Morrison e Maureen Tucker, celebra 45 anos de existência e terá sido provavelmente o primeiro disco de rock de vanguarda.  Vendeu pouco, mas na opinião de Brian Eno «quase todos os que o compraram formaram de seguida uma banda». Com o patrocínio de Andy Warhol, os velvets reuniram no seu corpo musical a crueza e secura das palavras de Reed, a experimentação, o negrume e o espírito vanguardista de Cale, o rigor rítmico de Morrison e a energia e tensão de Moe Tucker. Com a cumplicidade ocasional da voz gélida de Nico, o álbum de estreia ampliou todas estas qualidades convertendo-as numa massa sonora simultaneamente lírica e primitiva, quase sempre dissonante, angustiante e duma violência extrema, sem contudo rejeitar uma aproximação a delicadas e sedutoras melodias pop (embora com uma dose de veneno nada desprezível). Deliberadamente contra corrente, opositora natural do hippismo e flower power da época, a música dos Velvet Underground era prodigiosamente densa e rugosa, tensa e dramática, crescia avassaladoramente entre acelerações e desacelerações constantes, qual comboio elétrico imparável, e mostrava pela primeira vez uma visão crua da realidade, percorrendo com lentes desfocadas um quadro negro, esquizofrénico e dilacerado, onde cabia a androgenia, o sadomasoquismo, o mundo da droga, a violência das ruas ou a angústia de quem vive num mundo com poucas escolhas possíveis. Com Femme Fatale, Venus in Furs, All Tomorrow's Parties, Heroin, I'll Be Your Mirror ou Black Angel's Death Song, foi aqui que o rock alternativo verdadeiramente criou a sua matriz fundadora.

 

26 de Agosto de 2012

 

Frank Morgan: Love, Lost & Found (1995)

  

 

Frank Morgan não teve uma vida fácil; foram anos de sofrimento e múltiplas convulsões, marcados sobretudo pela sua submissão à droga e pelas consequentes e indesejáveis visitas às prisões da Califórnia. Porém, a crer no testemunho deixado por este magnífico Love, Lost & Found (gravado durante o mês de março de 1995), a maturidade proporcionou-lhe o reencontro tranquilo e gracioso com a paz. Auxiliado musicalmente por Cedar Walton, Ray Brown e Billy Higgins, cujo rigor instrumental é quase sempre sobreexcelente, Morgan dedica-se exclusivamente à interpretação de standards do jazz, abordando-os como se de uma viagem interior se tratasse: com sentimento, lirismo e sabedoria, através de uma depuração profunda, uma atenção ao detalhe e uma economia narrativa - onde cada nota é suficiente e nunca está a mais - que atingem nesta obra a sua máxima expressão artística. Um disco admirável, contagiante e comovente.

 

All the Things You Are, numa versão anterior...

06 de Maio de 2012

Wozzeck (1951), Alban Berg/Dimitri Mitropoulos

 

 

Wozzeck, do compositor Alban Berg, é uma ópera em três atos, cada um dividido em cinco cenas, na qual o seu autor procurou uma forma concisa de comunicação entre a música e o drama, dando ênfase a uma ideia de ópera que, como o próprio diria, «transcende, e muito, o destino individual de Wozzeck». Mas se Berg não queria que o público reparasse, durante a representação, na estrutura musical da peça, «as várias fugas e invenções, suítes e movimentos de sonata, variações e passacaglias (forma musical com origem em danças de ritmo ternário, que se constrói a partir de um baixo ostinato)», é difícil, porém, esquecer a complexa e audaciosa matriz musical da obra. Se por um lado, Wozzeck talvez não seja uma representação imaculada do homem comum, por outro, é evidente a força e o potencial da sua linguagem estética, a subtileza das sugestões musicais, a intensidade, o cromatismo e a profundidade dramática, ou a invenção artística e orquestral. Com o contributo de um conjunto de cantores excecional, Dimitri Mitropoulos, com um rigor e uma atenção ao detalhe assinaláveis e a utilização adequada de uma gama inesgotável de recursos estilísticos e expressivos, amplia o efeito avassalador de uma música prodigiosa, simultaneamente dissonante, lírica e atonal. Uma gravação histórica que se tornou um verdadeiro clássico do género.

 

 

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