a dignidade da diferença
15 de Novembro de 2021

 

 

O curioso contraste entre o optimismo inicial de Gilberto Gil «Pela Internet» - Eu quero entrar na rede/Promover um debate/Juntar via Internet/Um grupo de tietes de Connecticut - há cerca de 25 anos, e o canto fúnebre que ilustra os efeitos da passagem do tempo após a experimentação, em «Anjos Tronchos», de Caetano Veloso, uma das canções do recente e magnífico «Meu Coco», exemplo maior da raridade de uma música que continua a atravessar gerações e territórios, prova inequívoca e veemente da vitalidade, necessidade e actualidade do tropicalismo na afirmação da pluralidade brasileira.

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11 de Julho de 2015

A propósito do próximo concerto de Caetano Veloso e Gilberto Gil no festival EDP Cool Jazz (31 de Julho), em Oeiras, na comemoração dos seus 50 anos de carreira, aproveito para vos recordar o que Caetano escreveu na edição do álbum Tropicália 2 (a pretexto da celebração dos 25 anos do movimento). Trata-se de uma bela síntese do espírito do tropicalismo e do seu magnífico canibalismo sonoro, que ambos, com o contributo e o testemunho de outros intervenientes, idealizaram e concretizaram. Uma música sem idade nem fronteiras, que devorou géneros, gerações e territórios, cujos alicerces estéticos assentaram na aplicação prática da velha máxima: act local, think global. Praticamente tudo o que vinha de fora era aceite e digerido. Dessa recolha renascia um soberbo e revitalizado corpo musical após uma cuidadosa e devidamente dissecada matéria musical, filtrada por uma singular perspectiva regional.

 

Caetano-Gilberto.jpg

 

«Milton Nascimento’s falsetto is one of the most beautiful sounds produced by the human species today on this earth. In Carlinhos Brown the dry wilderness goes seaside and the sea laps at the wilderness. Assis Valente didn’t deserve that spiritualist couple of biographers who insisted on treating his sexual life in the same obscurantist climate of dissimulation and subterfuge the was the rule in the time in which he lived and probably contributed to his being driven to suicide. 1955, avantgardes: in the National Park, the Villas Boas brothers; in the National Library, the Campos brothers; in National Radio, Angela Maria and Cauby Peixoto. Roberto Silva was the shadow of the bridge that leads from Orlando Silva and Ciro Monteiro to João Gilberto – an evolutionary line not present in the mind of the other great ones of the period, who only saw the American side of modernization: the Alfs and Alves and Farneys, the Cariocas… The Tao is an invention of man from the Orient. The baião is an invention of men from the dry wilderness. The Tao of the baião will always be a musical path trough universal history. (…) Caruso, Celestino, Lanza, Pavarotti, Domingo – they sound like rooster to me, fine for crowing but though to cook. You need a little Sumac or Callas to soften then up. When I saw Prince for the first time on American TV I thought: Miles Davis like this. (…) Amália Rodrigues, Ray Charles, Cameron de la Isla: lessons of inevitable singing. Everything in Michael Jackson is made of pop material: his great music, his great dancing, his minimal life. In our times only he carries the same weight of popism as Marylin or Elvis or Elizabeth Taylor. (…) Everything that wasn’t American in Raul Seixas was too baiano, too much from Bahia.»

 

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19 de Junho de 2014

 

 

Em 1967, quando a Bossa Nova já dava alguns sinais de desgaste e cristalização, a música brasileira voltou a sintonizar-se com a modernidade e a ocupar o centro das atenções, ganhando nova importância à escala mundial. Com o Tropicalismo, um dos mais míticos movimentos culturais no campo das artes - sobretudo na música e no cinema -, aconteceu uma nova e vibrante revolução estética cujo plano de actividades girava em torno da ideia «act local, think global». Tropicália, o mais recente documentário de Marcelo Machado, aborda os acontecimentos mais marcantes daquele movimento, conduzindo-nos aos sons e às imagens da época, numa montagem feliz de depoimentos dos seus protagonistas intercalados com imagens de arquivo praticamente inéditas. O autor apresenta-nos o interior de uma imparável encenação artística, na qual evolui toda a dinâmica do movimento e, sem esquecer o talento e o papel fundamental de Gilberto Gil, Gal Costa, Nara Leão ou Tom Zé, sobressai o génio criativo de Caetano Veloso, dos Mutantes e de Rogério Duprat, criadores e encenadores de um glorioso canibalismo musical, onde, vítimas do seu apetite devorador, cabiam todas as músicas do mundo, magnificamente equilibradas num trapézio de sons subversivos, guitarras eléctricas, acordes dissonantes e orquestrações vanguardistas.

 

08 de Dezembro de 2012

 

 

«Glauber Rocha, o jovem diretor baiano, tinha se tornado, a essa altura, um verdadeiro líder cultural. Depois de rodar Barravento quando ainda morava na Bahia, ele impressionou diretores e críticos europeus com Deus e o Diabo na Terra do Sol, filme cheio de uma selvagem beleza que nos excitou a todos com a possibilidade de um grande cinema nacional. (…) Era uma tentativa de superar o estágio primitivo do cinema comercial brasileiro, representado pelas comédias carnavalescas cariocas conhecidas como “chanchadas”, uma fórmula inaugurada com sucesso nos anos 30. (…) Glauber liderou prática e teoricamente o movimento do Cinema Novo. Seu livro Revisão crítica do cinema brasileiro argumenta em favor da criação de um cinema superior nascido da miséria brasileira como o neorrealismo nascera da indigência das cidades italianas no imediato pós-guerra.

 

 

O filme-emblema é Deus e o Diabo na Terra do Sol. Bons filmes do Cinema Novo, como Os Fuzis, de Ruy Guerra, ou mesmo Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, (…) tinham, entre outras, a virtude de nos aproximar de um nível de feitura almejável, embora por caminhos bem diversos daqueles percorridos pela Vera Cruz, Anselmo Duarte ou (o solitário autor de filmes bergmanianos) Walter Hugo Khoury. Deus e o Diabo na Terra do Sol era bom (e mesmo melhor) por outras razões: ousava livremente acima e além da submissão aos esquemas industriais e da reverência ao já estabelecido artisticamente. Abordando a temática do fanatismo religioso no Nordeste brasileiro – com evidentes ecos de Os sertões, o grande livro de Euclides da Cunha -, e retomando o imaginário do banditismo rural daquela região – a marca forte de O cangaceiro -, Glauber (…) apresentava um painel exuberante e algo disforme (na Europa como no Brasil, chamou-se, creio que com acerto, “barroco”) das forças épicas embutidas em nossa cultura popular. Na verdade, o resultado final desse filme o aproxima mais do genial Pasolini de O Evangelho Segundo S. Mateus do que de qualquer outro diretor: a fotografia sem contraluz, o delírio construído com matéria crua, a imposição de um mundo mental às imagens – tudo isso é compartilhado por esses dois filmes realizados no mesmo ano.

 

 

 

Lembro que fui andando do solar até o cinema onde se exibia Terra em transe. O filme como um todo, no entanto, me pareceu desigual. E me agastava que ele não o fosse menos – era-o mesmo bem mais – do que Deus e o Diabo na Terra do Sol. As lamentações do seu principal personagem – um poeta de esquerda em conflito íntimo por ambicionar, muito além da justiça social, “o absoluto” – por vezes me soavam francamente subliterárias. (…) Mas, como já tinha sido o caso com os dois filmes anteriores de Glauber (e, ainda que em menor intensidade, com grande número de produções do Cinema Novo), incessantemente explodiam na tela as sugestões de uma outra visão da vida, do Brasil e do cinema que pareciam obsoletar esse tipo de exigência. E no caso de Terra em transe, o próprio poeta protagonista trazia, envolta em sua retórica, uma visão amarga e realista da política, que contrastava flagrantemente com a ingenuidade de seus companheiros de resistência à ditadura militar recém-instaurada (o filme é o momento do golpe de Estado reconstituído como um pesadelo pela mente do poeta ao morrer).»

Verdade Tropical, de Caetano Veloso

  

 

29 de Maio de 2011

 

«Um dos problemas mais instigantes da vanguarda – e o que faz muitos artistas instigantes fugirem dela como o diabo da cruz – é sua dúbia disposição em face da ambição, que lhe é intrínseca, de tornar-se a norma. Recentemente ouvi de Arto Lindsay que os músicos e produtores dessas formas mais em voga de dance music (techno) são consumidores vorazes de justamente desse reportório heroicamente defendido por Augusto (de Campos). Assim, muito mais do que Paul (McCartney) pode ter ouvido Stockhausen, esses garotos ouvem Varèse e Cage, Boulez e Berio. E, me diz Arto, só falam nisso. O que pensar? Nos anos 70, vozes conservadoras (e muito úteis) já se lamentavam para protestar contra o “modernismo nas ruas”. Mas onde e como se formará o ouvido coletivo naturalmente familiarizado com a músicas dos pós-serialistas ou pós-dodecafônicos?

 

 

E que mundo será esse em que uma música assim soe como música ao ouvido de “todos”? Ao ver quadros de Monet, meu filho de cinco anos comentou que eles eram “muito malfeitos se vistos de perto”, embora “parecessem bem-feitos” se olhados à distância. Eu próprio não sei dizer exatamente por que a música de Webern (sobretudo a mais radical) me pareceu indiscutivelmente bela desde a primeira audição. Serão os garotos da techno-dance um embrião de minoria de massa? O que acontecerá ao ouvido tonal tal como o conhecemos se o fracasso de público da música mais impopular for superado? Quando eu vi MTV pela primeira vez em Nova Iorque, escrevi um artigo intitulado “Vendo canções” (intencionalmente usando os dois sentidos da palavra vendo) em que faço perguntas um pouco mais superficiais mas que apontam na mesma direção: os procedimentos de filmes de vanguarda, jogados no lixo pelo cinema sério e pelo comercial, tinham finalmente se refugiado ali naqueles filmecos de rock’n’roll, que eram a um tempo ilustrações erráticas das canções e anúncios dos discos correspondentes. Hoje não aguento assistir a vídeos de rock por muito tempo: o excesso de imagens esforçando-se por parecerem bizarras me entediam, sobretudo na velocidade em que são editadas. Mas a questão permanece: as referências ao Chien Andalou ou a Metropolis – e todo o permanente parentesco com Le sang d’un poète, de Cocteau – estão num vídeo de rock exatamente e apenas com formas de Mondrian na minissaia de uma puta ou só agora o “modernismo” ou as “vanguardas” começam a perder direito a esses nomes de ruptura?»

Excerto do livro «Verdade Tropical», de Caetano Veloso

 

 

Webern, 5 Andamentos, para Quarteto de Cordas

publicado por adignidadedadiferenca às 01:39 link do post
01 de Fevereiro de 2009

Para o que seria a estréia tropicalista, a apresentação de “Alegria, alegria” no festival da TV Record, estávamos todos certos, Gil, Guilherme e eu, de que um grupo de iê-iê-iê (rock) deveria ser contratado como acompanhante. Antes que eu pudesse comunicar minha intenção de convidar o RC7 a Guilherme, ele surgiu com uma solução irresistível. A casa noturna paulista O Beco, de Abelardo Figueiredo, um velho conhecido de Guilherme, tinha sob contrato um grupo de rock argentino chamado Beat Boys, composto de jovens músicos portenhos muito talentosos e conhecedores da obra dos Beatles e do que mais houvesse. Guilherme, que os ouvira casualmente numa ida ao Beco, me sugeriu que fosse conferir. Ao vê-los e ouvi-los, soube que aquilo era a coisa certa. O aspecto do grupo de rapazes de cabelos muito longos portando guitarras maciças e coloridas representava de modo gritante tudo o que os nacionalistas da MPB mais odiavam e temiam.

 

Alegria, alegria

 

Há um critério de composição em “Alegria, alegria” que, embora tenha sido adotado por mim sem cuidado e sem seriedade, diz muito sobre as intenções e as possibilidades do momento tropicalista. Em flagrante e intencional contraste com o procedimento da bossa nova, que consistia em criar peças redondas em que as vozes internas dos acordes alterados se movessem com natural fluência, aqui opta-se pela justaposição de acordes perfeitos maiores em relações insólitas. Isso tem muito a ver com o modo como ouvíamos os Beatles – de que não éramos (eu ainda menos do que Gil) grandes conhecedores. A lição que, desde o início, Gil quisera aprender dos Beatles era a de transformar alquimicamente lixo comercial em criação inspirada e livre, reforçando assim a autonomia dos criadores – e dos consumidores. (...) Nós partiríamos dos elementos de que dispúnhamos, não da tentativa de soar como os quatro ingleses. No meu caso – tanto em “Alegria, alegria” quanto na posterior e mais rebuscada “Clara” – há a presença (assumidamente consciente à época) do judaísmo pernambucano de Franklin Dario. Os Beat Boys se sentiram à vontade com esse material algo original mas talvez pouco consistente para beatlemaníacos. (...) As canções tropicalistas não se parecem com as canções dos Beatles – não na mesma medida em que essas outras são paródias delas.

Suponho que foi o maestro Júlio Medaglia quem promoveu a aproximação entre nós e o grupo de músicos eruditos contemporâneos de São Paulo a que ele pertencia. Medaglia pôs Gil em contato com Rogério Duprat que, por sua vez, o pôs em contato com os Mutantes.

A canção que Gil escolhera para apresentar o ainda não nomeado tropicalismo ao público do festival era uma adaptação de temas básicos de cantos de capoeira ao método harmónico de cortes bruscos (...) como sustentação da narrativa fortemente visual, na letra, de um crime passional ocorrido entre gente humilde num domingo em Salvador. Enquanto a minha canção se referia a estrelas de cinema (Brigitte Bardot, Claudia Cardinale), o “Domingo no parque” de Gil fora concebido quase como um filme. Com uma capacidade musical imensamente maior do que a minha, Gil entrou num diálogo fascinante com o músico erudito de vanguarda Rogério Duprat e com o grupo de rock Mutantes, criando um arranjo híbrido de trio de rock, percussão baiana (berimbau) e grande orquestra.

Os Mutantes eram três adolescentes da Pompéia, bairro de São Paulo (...) Quando Duprat os apresentou a Gil, este comentou comigo assustado: “São meninos ainda, e tocam maravilhosamente bem, sabem de tudo, parece mentira”.

 

Eles pareciam três anjos. Sabiam tudo sobre o rock renovado pelos ingleses nos anos 60, tinham a cara da vanguarda pop da década. Diferentemente dos roqueiros dos anos 50, eles eram refinados, tinham um estilo de comportamente cheio de nuances e delicadeza. Sérgio, com apenas dezasseis anos, exibia uma técnica guitarrística de primeira linha, em nível internacional. Rita e Arnaldo eram namorados desde a infância e tudo em volta deles tinha um sabor a um tempo anárquico e recatado. Ela era extramente bonita e sua porção americana muito evidente (era filha de um emigrante americano com uma descendente de italianos) lhe dava um ar em que se misturavam liberdade e puritanismo. (...) Lembro apenas que, por causa de Arnaldo, tínhamos de evitar palavrões em presença de Rita. (...) Era, no entanto, prazeroso, além de espantoso, tê-los por perto. E o resultado do trabalho  - e do trabalho subsequente deles como grupo e como artistas individuais (Rita tornou-se e é até hoje a maior estrela feminina do rock brasileiro) – foi entusiasmante.

 

Excerto do livro «Verdade Tropical» de Caetano Veloso

 

Domingo no parque

 

publicado por adignidadedadiferenca às 20:54 link do post
24 de Janeiro de 2009

Enquanto estive de férias, apanharam-me distraído e passaram-me uma daquelas correntes que, ocasionalmente, aparecem pela blogosfera, neste caso uma corrente musical. Não sei onde começou mas foi daqui que ela me chegou às mãos.

Comecei, naturalmente, por olhar para a coisa com um certo ar desconfiado – esta treta das correntes não faz nada o meu género – e, embora correndo o risco de ser mal interpretado, pensei em amarrotar a corrente e deitar para o lixo.

Contudo, a proposta até era bem original e francamente engraçada; só precisava de escolher um músico/intérprete/compositor que admirasse e, de seguida, escolher, entre os seus álbuns, dez músicas que se encaixassem nas dez perguntas que me eram colocadas. E lá estava eu, primeiro contrariado depois encantado, a pesquisar quem se poderia enquadrar nos tópicos que me deixaram.

Experimentei quem mais admirava e, por essa razão, fui ao encontro de John Cale e, posteriormente, da Suzanne Vega. Qualquer dos dois me obrigou a desistir a meio do caminho. Se escolhesse o Cale ia acabar no psiquiatra e com a Suzanne Vega não consegui arranjar canções para todas as perguntas.

Até que me lembrei de experimentar aquele que considero o melhor escritor de canções de língua portuguesa e um dos maiores autores universais de música contemporânea, o brasileiro e cidadão do mundo Caetano Veloso.

Foi a escolha acertada porque facilmente arranjei as 10 canções de que precisava para responder às 10 perguntas e ficar com o problema resolvido.

Aqui estão elas:

 

1 - És homem ou mulher?

 

Leãozinho

 

2 - Descreve-te

 

Coração vagabundo

 

3 - O que as pessoas acham de ti?

 

O estrangeiro

 

4 - Como descreves o teu último relacionamento?

 

Não enche

 

5 - Descreve o estado actual da tua relação

 

Sozinho

 

6 - Onde querias estar agora?

 

Manhatã

 

7 - O que pensas a respeito do amor?

 

Branquinha

 

8 - Como é a tua vida?

 

Boas vindas

 

9 - O que pedirias se pudesses ter um só desejo?

 

Livros

 

10 - Escreve uma frase sábia

 

Terra

 

E agora estou com vontade de enviar esta corrente para algumas pessoas que dão uma ou outra espreitadela ao blog e que julgo terem o perfil adequado para se divertirem com este pequeno passatempo musical.

Lembrei-me da Ana Cristina Leonardo para descansar um pouco dos livros e mostrar a sua sapiência musical, do Manuel para encontrar um músico-do-arco-da-velha, da menina alice porque julgo que tem o sentido de humor adequado para se divertir com estas frivolidades e, finalmente, da Ionesco porque sei que vai apreciar o gesto.

E prometo não me meter noutra.

 

 

publicado por adignidadedadiferenca às 00:54 link do post
16 de Julho de 2008

TRANSE

 

Se o tropicalismo se deveu em alguma medida a meus atos e minhas idéias, temos então de considerar como deflagrador do movimento o impacto que teve sobre mim o filme Terra em transe, de Glauber Rocha, em minha temporada carioca de 66-7. Meu coração disparou na cena de abertura, quando, ao som do mesmo cântico de candomblé que já estava na trilha sonora de Barravento – o primeiro longa-metragem de Glauber -, se vê, numa tomada aérea do mar, aproximar-se a costa brasileira. E, à medida que o filme seguia em frente, as imagens de grande força que se sucediam confirmavam a impressão de que aspectos insconscientes de nossa realidade estavam à beira de se revelar.

Glauber Rocha, o jovem diretor baiano, tinha se tornado, a essa altura, um verdadeiro líder cultural. Depois de rodar Barravento quando ainda morava na Bahia, ele impressionou diretores e críticos europeus com Deus e o Diabo na Terra do Sol, filme cheio de uma selvagem beleza que nos excitou a todos com a possibilidade de um grande cinema nacional. Não se tratava de uma conquista de padrão de qualidade: essa tinha sido a meta da Vera Cruz, produtora criada pelo empresário paulista Franco Zampari, que construiu um estúdio bem estruturado onde se produziam, até metade dos anos 50, filmes de bom acabamento. Para dirigir o empreendimento, Zampari convidou Alberto Cavalcanti, o cineasta brasileiro que atuara com sucesso na Inglaterra e na França e voltava ao Brasil atendendo a esse convite da elite brasileira para instituir uma indústria cinematográfica de alto nível entre nós. Era uma tentativa de superar o estágio primitivo do cinema comercial brasileiro, representado pelas comédias carnavalescas cariocas conhecidas como «chanchadas», uma fórmula inaugurada com sucesso nos anos 30. O movimento do cinema novo, na primeira metade dos anos 60, opôs-se tanto ao academicismo das produções respeitáveis da Vera Cruz quanto ao primarismo das chanchadas. A vitória de prestígio do movimento sobre essas duas tendências não foi atingida sem dificuldade, e não se pode dizer que a desatenção – quase hostilidade – a produções como O cangaceiro (Vera Cruz) ou O homem do Sputnik (chanchada) não pareçam hoje francamente injustas.

Glauber liderou prática e teoricamente o movimento do Cinema Novo. Seu livro Revisão crítica do cinema brasileiro argumenta em favor de um cinema superior nascido da miséria brasileira como o neo-realismo nascera da indigência das cidades italianas no imediato pós-guerra. Ali ele conclamava os jovens intelectuais de esquerda que se sentissem atraídos pelo cinema a inspirarem-se no Nelson Pereira dos Santos de Rio, 40 graus, e naturalmente isso significava desprezar tanto os sensatos que apenas tentavam encenar diante da câmera histórias razoavelmente roteirizadas, quanto os malandros que produziam diversão para um público semi-analfabeto.

O filme-emblema é Deus e o Diabo na Terra do Sol. (...) ousava livremente acima e além da submissão aos esquemas industriais e da reverência ao já estabelecido artisticamente. Abordando a temática do fanatismo religioso no Nordeste brasileiro – com evidentes ecos de Os sertões, o grande livro de Euclides da Cunha -, e retomando o imaginário do banditismo rural daquela região – a marca forte de O cangaceiro – Glauber, sem temer a mão às vezes pesada, às vezes canhestra com que exibia ensinamentos estéticos de Eisenstein, Rossellini, Buñuel ou Brecht (mais nouvelle vague e alguns cacoetes aprendidos no então para nós emergente cinema japonês), e lições ideológicas de marxistas, apresentava um painel exuberante e algo disforme (na Europa como no Brasil, chamou-se, creio que com acerto, «barroco») das forças épicas embutidas em nossa cultura popular. Na verdade, o resultado final desse filme o aproxima mais do genial Pasolini de O evangelho segundo s. Mateus do que de qualquer outro diretor: a fotografia sem contraluz, o delírio construído com matéria crua, a imposição de um mundo mental às imagens – tudo isso é compartilhado por esses dois filmes realizados no mesmo ano. Mas Deus e o Diabo na Terra do Sol não se apoiava em algo como a poderosa singeleza dos Evangelhos: ele tinha que dar conta de todo um imaginário e de toda uma problemática particulares do Brasil. Via-se na tela o próprio desejo dos brasileiros de fazer cinema.

 

Excerto do livro «Verdade Tropical» de Caetano Veloso

 

Deus e o Diabo na Terra do Sol

O Evangelho segundo S. Mateus

12 de Junho de 2008

 

A propósito da comemoração dos 40 anos do genial disco-manifesto «Tropicalia ou panis et circencis», que marcou oficial, colectiva e musicalmente o prodigioso movimento estético que recebeu o nome de tropicalismo, vou iniciar aqui uma rubrica dedicada ao assunto, através da voz do seu mais influente interveniente, Caetano Veloso, muito provavelmente, o maior compositor de língua portuguesa.

 

Parece-me a coisa mais justa e pertinente, pois, para mim, o tropicalismo é, ainda, o combustível que alimenta grande parte da óptima música que se faz hoje em dia em todo o mundo, através do seu multiculturalismo, da pilhagem de todos os detalhes e sinais exteriores sem que a música perca a sua identidade cultural ou a sua origem.

 

Partindo da sua matriz indiscutivelmente brasileira voou, livre e majestosamente, sobre o mundo, atravessando países e oceanos, devorando o tempo ao conjugar na perfeição presente, passado e futuro. Um exemplo para o mundo. Mais do que a bossa nova, o tropicalismo foi a mais importante e criativa revolução musical brasileira, e a que se mantém, ainda hoje, mais actual.

A partir de agora, como prometi, vou deixar falar Caetano, mostrando excertos do seu livro «Verdade Tropical», deixando, aqui e ali, sempre que julgue necessário, pequenas anotações inseridas no seu contexto, a que vou adicionando os já habituais vídeos e fotografias para dar um colorido mais vibrante à iniciativa.

 

Por aqui vão passar Caetano Veloso (naturalmente), Gilberto Gil, os magníficos «Os Mutantes», Nara Leão, Gal Costa, Tom Zé, o cinema novo brasileiro com Glauber Rocha à cabeça, a poesia concreta, o maestro vanguardista Rogério Duprat (essencial para a concretização da ousadia musical) e muitos outros. E também não vou deixar passar em claro o facto de Chico Buarque, que muitos, equivocamente, consideram o nome maior da música popular brasileira, apoiar, naquele momento vital de ebulição rítmica e geracional, o lado errado da barricada, ou seja, o do conservadorismo e do  reaccionarismo estético.

Estejam atentos.

 

 

07 de Junho de 2008

Terra, de Caetano Veloso

 

 

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