a dignidade da diferença
10 de Fevereiro de 2016

 

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«O que é notável em “Os Anéis de Saturno” e em “Os Emigrantes” é a artificialidade reticente da narração de Sebald, através da qual os factos são recolhidos no mundo real e transformados em ficção. Isto é o oposto da banal leveza “faccional” de escritores como Julian Barnes e Umberto Eco, que pegam nos factos e desestabilizam-nos superficialmente dentro da ficção, que os agitam um pouco, mas cujas obras são, na verdade, um tributo à religião dos factos. A crença de escritores como estes na ficção não é suficientemente profunda para que abandonem o mundo real, brincam com a exatidão, vivem mesmo obcecados com a exactidão e a inexactidão, porque, para estes escritores, até mesmo os factos imprecisos são dotados de uma electricidade empírica, dado que nos despertam uma maior avidez de informação. Esta neurose informativa torna as suas ficções ruidosamente inofensivas. Para estes escritores, os factos são um desporto, acessórios semióticos e são, em última análise, de fácil interpretação. No entanto, para Sebald, os factos são indecifráveis, logo, trágicos. Sebald funciona de forma exactamente oposta à de Barnes ou Eco. Ainda que estes livros profundamente elegíacos sejam feitos das cinzas do mundo real, Sebald transforma os factos em ficção entrelaçando-os tão profundamente nas suas formas narrativas que nos dá a impressão de nunca terem pertencido à vida real e de apenas na prosa de Sebald terem encontrado a sua verdadeira existência. É este o movimento de qualquer ficção poderosa, por muito realista que seja: inserido na ficção, o mundo real ganha contornos mais fortes, mais ásperos, porque recebe um padrão intrincado que não existe na vida real. Na obra de Sebald os factos não parecem apenas ficção, tornam-se ficção, embora não deixem de ser reais e autênticos.»

James Wood, in A Herança Perdida

16 de Julho de 2015

 

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«As personagens de Tchékov esquecem-se que são personagens de Tchékov. Vemos isso de forma maravilhosa num dos seus primeiros contos, “O Beijo”, escrito quando tinha vinte e sete anos. Um soldado virgem beija uma mulher pela primeira vez na vida. Ele guarda essa memória e está ansioso por contar a experiência aos seus companheiros. Porém ao contar-lhes a história fica desiludido por só ter demorado um minuto a conta-la quando imaginava “que fosse durar a noite toda”. É frequente as personagens de Tchékov ficarem desiludidas com as histórias que contam e com inveja das histórias das outras pessoas. Mas ficar desiludida com a sua própria história é uma liberdade extraordinariamente subtil em literatura, porque implica a liberdade da personagem de se desiludir não só com a sua própria história mas, por extensão, com a história que Tchékov lhe atribuiu. Desta forma a personagem liberta-se da história de Tchékov para a interminável liberdade da desilusão. Está sempre a tentar fazer a sua própria história a partir da história que Tchékov lhe atribuiu, mas mesmo esta liberdade da desilusão será uma desilusão. (…) E no entanto, é uma liberdade. Vemo-lo perfeitamente em “O Beijo”. O soldado esquece-se que faz parte da história de Tchékov porque está completamente imerso na sua própria história. A sua história é interminável, e ele espera que dure a noite toda. No entanto, a história de Tchékov “conta-se num minuto”. No mundo de Tchékov, as nossas vidas interiores têm uma velocidade própria. São calendarizadas sem rigor. Regem-se por um almanaque ameno, e nos seus contos a vida interior choca com a vida exterior como dois sistemas cronológicos diferentes, como o calendário juliano em oposição ao gregoriano. Era isto que Tchékov queria dizer com “vida”. Foi esta a sua revolução.»

James Wood, The Broken Estate

23 de Novembro de 2013

 

Reunindo neste livro (The Broken Estate) um conjunto de ensaios que foi escrevendo durante vários anos sobre literatura e crença, o crítico literário James Wood, começando por distinguir com clareza realidade e realismo no domínio ficcional, abeira-se do universo literário de um naipe muito amplo e diversificado de escritores – de Jane Austen a Flaubert, ou de Julian Barnes a W. G. Sebald, por exemplo – propondo uma análise subjetiva a respeito da forma como aqueles escritores vivem e pensam a literatura, em que esta, segundo o autor, funciona como uma espécie de crença, de religião. Com alguma polémica, originalidade interpretativa, engenho argumentativo e conhecimento profundo da matéria, James Wood possibilita ainda uma releitura de autores consagrados a respeito dos quais pensávamos que já tudo estava escrito. Eis um pequeno excerto da introdução ao livro que resume satisfatoriamente a unidade temática dos seus ensaios:

 

 

«A ficção é obviamente uma forma de mentir, e historicamente, como bem o sabemos, este comércio com a falsidade é motivo de desconforto com os leitores. A brutalidade da rejeição do “realismo” de Roland Barthes talvez seja, em última análise, religiosa (por muito que ele seja considerado um esteta formalista secular), e representa uma espécie de intensa desilusão moral pelo facto de a ficção recorrer a artifícios e a truques, representa um protestantismo com vontade de esmagar a parafernália falsa, a maquinaria religiosa da narrativa, os vitrais e os ornamentos enganadores e deixar que a luz do Sol brilhe através das janelas abertas (é interessante que o alvo frequente do formalismo francês seja o artístico Flaubert enquanto o mais transparente dos realistas, Tolstói, raramente seja mencionado, porque é muito mais difícil “expor” a sua arte desta maneira). E na verdade, o tipo de crença que a ficção nos exige é muito diferente da crença religiosa. A ficção pede-nos que acreditemos, mas a qualquer momento podemos escolher não acreditar.

 

 

Este é seguramente o verdadeiro secularismo da ficção – e o motivo por que, apesar de ser mágica, é realmente a inimiga da superstição, a destruidora de religiões, a escrutinadora da falsidade. A ficção desloca-se na sombra da dúvida, sabe que é uma mentira verdadeira, sabe que a qualquer momento os seus argumentos podem falhar. A crença na ficção é sempre uma crença “como se”. A nossa própria crença é metafórica – é apenas semelhante à verdadeira crença, e portanto nunca é uma crença por inteiro. No seu ensaio “Sufferings and Greatness of Richard Wagner”, Thomas Mann escreve que a ficção é sempre uma questão do “não muito”: “Para o artista as novas experiências da ‘verdade’ são novos incentivos para o jogo, novas possibilidades de expressão, e não mais do que isso. O artista acredita nelas, leva-as a sério, na medida das suas necessidades a fim de lhes dar a expressão mais completa e mais profunda. Em tudo isso, ele é muito sério, sério até às lágrimas – e, no entanto, não muito – e consequentemente, nem um pouco. A sua seriedade artística é de uma natureza absoluta, é ‘fazer de conta a sério’.»

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