a dignidade da diferença
19 de Setembro de 2016

 

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Na admirável filmografia de Nicholas Ray estão presentes, na sua essência, uma sensação de perda e de dor magoada dos seus heróis, as personagens emocionalmente desmedidas, o conflito de gerações e as suas relações demasiado humanas, obsessivas e tormentosas. Mas não só, pois a sua obra transmite amiúde uma dimensão trágica, cruel ou confessional, assombrosamente ampliada pelo delírio pungente do cinemascope, corolário estética de uma visão artística fulgurante e personalizada, concretizada numa exploração profunda da vida enquanto experiência humana íntima e irrepetível. Em síntese, o tipo de cineasta cuja obra, atravessando múltiplos géneros, só ganha em ser avaliada no seu conjunto, mesmo os seus filmes mais desequilibrados ou imperfeitos. O modelo (neste caso) tão justamente venerado pelos defensores da política de autores. Numa carreira ilustrada por uma série assinalável de momentos significativos – tais como In a Lonely Place, On Dangerous Ground, The Lusty Men, Johnny Guitar, Rebel Without a Cause, Bitter Victory ou Party GirlBigger Than Life (Atrás do Espelho, com James Mason no papel principal) é um dos mais inesquecíveis e celebrados. Filme soberbo sobre a transição da ansiedade à opressão, Bigger Than Life, na sua lucidez e plena expressividade, tem muitas razões para ser louvado. Uma das menos recordadas, como bem assinalou François Truffaut no seu Les Films de Ma Vie, consiste no modo como Ray «desmontou as relações de um intelectual com a sua esposa».

 

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Passo-lhe definitivamente a palavra: «as relações de um intelectual com a sua esposa, mais simples do que ele, surgem desmontadas com uma lucidez e uma franqueza quase aterradoras. Sim, pela primeira vez, é-nos mostrado o intelectual em casa, na sua casa, na sua intimidade, seguro pela superioridade do seu vocabulário, tendo a seu favor a dialéctica, face a uma esposa que sente as coisas, mas renuncia a dizê-las por não possuir a mesma linguagem. Como muitas mulheres, é fundamentalmente intuitiva e comandada pelo seu amor e sensibilidade. Cinquenta variações deste tema fazem de Atrás do Espelho, independentemente do seu carácter excepcional, um excelente retrato do casamento.» 

 

 

25 de Abril de 2011

 

 

«James Mason nunca fez de Heathcliff. Nunca ouvimos a voz dele perguntar pelo cheiro das urzes ou amaldiçoar a selvagem e meiga Cathy. Mas quase todos os seus grandes papéis são variações sobre essa personagem e ninguém o descreveu melhor do que Emily Brontë na célebre passagem em que Heathcliff regressa a Trushcross Grange, quando era Setembro e era lua e a ferocidade do olhar dele dizia do desejo de enforcar todos os seres, excepto um. Era daí que vinha a alquimia da sua voz, a viagem à pátria das sombras e dos turbilhões, a danação do arco-íris, a doce e mortal dentada da felicidade. Com ele, como com Rimbaud, que estou a traduzir livremente, essa felicidade só podia ser fatalidade, remorso e verme. Com a voz, também ele escreveu silêncios e noites e todas as coisas que, no escuro, se podem passar entre um homem e uma mulher. Com a voz, também, ele gravou o inexprimível e fixou vertigens. Foi, sozinho, uma ópera fabulosa. Adamante e Senhor do Navio.»

 

João Bénard da Costa, Muito Lá de Casa, Assírio & Alvim

 

 

Ninguém melhor do que Bénard da Costa para descrever o extraordinário actor que foi James Mason. Dos imensos papéis que fez, guardamos memória sobretudo dos personagens que fez nos anos 50 e 60 do século passado. Foi, entre outros, o ambíguo e venenoso Cícero (Five Fingers, de Mankiewicz), o odioso Rommel (The Deserts Rats, de Hathaway), e participou, com Judy Garland, no sublime A Star is Born, de Cukor. O apogeu, porém, só o atingiu no assombroso Bigger Than Life, de Nicholas Ray, conhecido em Portugal como Atrás do Espelho, onde inventa literalmente Ed Avery, o protagonista que por causa da dependência de um remédio, passa sucessivamente da inquietação ao desespero, atingindo este último e incontrolável estado no celebérrimo e assustador plano em que pretende matar o filho, julgando-se acima de Deus e procurando «corrigir-lhe» o erro. Um patamar de excelência que voltou a atingir no genial North by Northwest, de Hitchcock, onde interpreta o terrível e fascinante vilão Philip Vandamm, ou ainda nesse espantoso Humbert que vive numa vertiginosa sofreguidão pela Lolita de Kubrick, que Adrian Lyne transformou anos mais tarde numa indesculpável versão para adolescentes imberbes, copinhos de leite e parolos.

publicado por adignidadedadiferenca às 01:18 link do post
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