a dignidade da diferença
06 de Julho de 2014

 

 

Ao citar títulos ficcionados, referências imaginárias, in-fólios e autores que nunca existiram, Borges não faz mais do que reagrupar elementos da realidade na forma de outros mundos possíveis. Ao passar, por meio do jogo de palavras e do eco, de uma língua a outra, faz girar o caleidoscópio, projecta luz sobre uma outra secção do muro. Como Emerson, que infatigavelmente cita, Borges sabe que a visão de um universo simbólico, exaustivamente entretecido, é uma alegria certa (…) Para Borges, como para os transcendentalistas, não há coisa viva ou som que não contenha uma cifra de todos os outros. Este sistema de sonhos (…) engendrou algumas das narrativas breves mais inspiradas e assombrosamente originais da literatura ocidental. «Pierre Menard», «A Biblioteca de Babel», «As Ruínas Circulares», «O Aleph», «Tlön, Uqbar, Orbis Tertius», «A Busca de Averróis» são outras tantas obras-primas lacónicas. A sua perfeição concisa, como a de um bom poema, constrói um mundo que é ao mesmo tempo fechado, com o leitor inevitavelmente dentro dele, e todavia aberto à ressonância mais ampla. Certas parábolas, não mais compridas do que uma página (…) são, ao lado das de Kafka, realizações únicas dessa forma manifestamente frágil. Se nada mais tivesse produzido além das «Ficções», Borges contar-se-ia entre os poucos sonhadores novos desde a época de Poe e Baudelaire. Tornou mais profunda – e tal é a marca de um artista verdadeiramente grande – a paisagem das nossas memórias. No entanto, apesar da sua universalidade formal e das dimensões vertiginosas do seu leque de alusões, o edifício da arte de Borges tem falhas severas. Só uma vez, no conto chamado «Emma Zunz», Borges criou uma mulher verosímil. Ao longo da sua restante obra, as mulheres são vagos objectos da fantasia ou das recordações dos homens. Mesmo entre homens, as linhas de força da imaginação de Borges são restritivamente simplificadas. A equação fundamental é a do duelo.

George Steiner, Tigres no Espelho, ensaio publicado em The New Yorker.

16 de Junho de 2012

 

 

«Há no mundo, e mesmo no mundo dos artistas, pessoas que vão ao Museu do Louvre e passam rapidamente, e sem lhes dispensar um olhar, diante de uma imensidade de quadros muito interessantes ainda que de segunda ordem, mas que depois se postam sonhadoramente diante de um Ticiano ou der um Rafael, um desses que a gravura mais popularizou; então, saem satisfeitas, e há algumas que dizem: "Eu cá conheço o meu museu." Existem também aqueles que, tendo lido em tempos Bossuet e Racine, se julgam senhores da história da literatura. Felizmente, surgem de tempos a tempos justiceiros, críticos, amadores, curiosos que afirmam que não está tudo em Rafael, que não está tudo em Racine, que os poetæ minores têm algo de bom, de sólido e delicioso; e, enfim, que, por tanto se amar a beleza geral, que é expressa pelos poetas e artistas plásticos, não deixa de ser um erro não ligar à beleza particular, à beleza de circunstância e à marca dos costumes. Devo dizer que o mundo, há vários anos, se corrigiu um pouco. O valor que os amadores atribuem hoje às amabilidades gravadas e coloridas do século passado prova que se deu uma reação no sentido do que o público precisava; Debucourt, os Saint-Aubin e muitos outros entraram no dicionário dos artistas dignos de estudo. Mas esses representam o passado; ora, é à pintura dos costumes do presente que me quero dedicar hoje. O passado é interessante não apenas pela beleza que dele souberam extrair os artistas para quem ele era o presente, mas também como passado, pelo seu valor histórico. O mesmo se passa com o presente. O prazer que retiramos da representação do presente provém, não só da beleza de que pode revestir-se, mas ainda da sua qualidade essencial de presente.»

A Invenção da Modernidade, tradução de Pedro Tamen

15 de Fevereiro de 2011

 

Remorso Póstumo

 

Quando um dia dormires, ó bela tenebrosa / No fundo de um jazigo de mármore negro, / E quando só tiveres por alcova ou conchego / Essa fossa vazia, essa cova chuvosa;

 

Quando a pedra, oprimindo o teu peito medroso / E os teus flancos agora indolentes, privar / Esse teu coração de bater e de amar, / E os teus pés de seguir um curso aventuroso,

 

O túmulo, que sabe todos os meus sonhos / (porque sempre o coval há-de entender o poeta), / Nessas noites sem fim onde já não há sono,

 

Dir-te-á: «De que serviu, cortesã incorrecta, / Nunca teres conhecido o que choram os mortos?» / - E os vermes vão roer-te a pele como um remorso.

 

Baudelaire, As Flores do Mal, assírio & Alvim, tradução de Fernando Pinto do Amaral.

publicado por adignidadedadiferenca às 23:14 link do post
18 de Agosto de 2008

Para quê? Vasto e terrível ponto de interrogação, que agarra a crítica pela gola do casaco desde o primeiro passo que pretenda dar no seu primeiro capítulo.

O artista começa por censurar à crítica o facto de nada poder ensinar ao burguês, que não quer pintar nem rimar – nem à arte, já que foi das suas entranhas que a crítica saiu.

E, contudo, quantos artistas deste tempo só a ela devem a sua pobre nomeada! Será talvez essa a verdadeira censura a fazer-lhe.

Vimos como um Gavarni representou um pintor curvado sobre a sua tela e, atrás dele, um cavalheiro, grave, seco, hirto e engravatado de branco, tendo na mão o seu último folhetim. «Se a arte é nobre, a crítica é santa.» - «Quem disse isso?» - «A crítica!» Se ao artista cabe com tanta facilidade o bom papel, é porque o crítico é sem dúvida um crítico como há tantos.

Em matéria de meios e processos – das obras em si mesmas o público e o artista nada têm a aprender. Essas coisas aprendem-se no atelier, e o público só se preocupa com o resultado.

 

Creio sinceramente que a melhor crítica é a crítica divertida e poética; não esta, fria e algébrica que, a pretexto de explicar tudo, não tem ódio nem amor, e que voluntariamente se despoja de qualquer espécie de temperamento; mas sim – uma vez que um belo quadro é a natureza reflectida por um artista – aquela que consistirá nesse quadro reflectido por um espírito inteligente e sensível. Assim, a melhor recensão de um quadro poderá ser um soneto ou uma elegia.

Mas este género de crítica destina-se às colectâneas de poesia e aos leitores poéticos. Quanto à crítica propriamente dita, espero que os filósofos compreendam o que vou dizer: para ser justa, isto é, para ter a sua razão de ser, a crítica deve ser parcial, apaixonada, política, quero dizer, feita de um ponto de vista exclusivo, mas do ponto de vista que abre mais horizontes.

Exaltar a linha em detrimento de cor, ou a cor à custa da linha, é, sem dúvida, um ponto de vista; mas não é amplo nem justo, e denota uma grande ignorância dos destinos individuais.

Ignora-se em que dose a natureza misturou em cada espírito o gosto pela linha e o gosto pela cor, e através de que misteriosos processos ela opera tal fusão, cujo resultado é o quadro.

Assim, um ponto de vista mais amplo será o individualismo bem entendido: determinar ao artista a ingenuidade e a expressão sincera do seu temperamento, auxiliada por todos os meios que lhe são concedidos pelo seu ofício. Quem não tem temperamento não é digno de fazer quadros, e – como estamos cansados dos imitadores, e sobretudo dos eclécticos – deve entrar como operário ao serviço de um pintor com temperamento. É o que demonstrarei num dos últimos capítulos.

 

Agora munido de um critério seguro, critério esse colhido na natureza, o crítico deve cumprir com paixão o seu dever; porque, por ser crítico, nem por isso é menos homem, e a paixão aproxima os temperamentos similares e ergue a razão a novas alturas.

Disse algures Stendhal: «O pintor não é mais que moral construída!» Quer se entenda esta palavra moral num sentido mais ou menos liberal, pode dizer-se o mesmo de todas as artes. Como elas são sempre o belo expresso pelo sentimento, pela paixão e pela fantasia de cada um, isto é, a variedade na unidade, ou as faces diversas do absoluto – a cada instante a crítica atinge a metafísica.

Visto que cada século, cada povo teve a expressão da sua beleza e da sua moral, e se quisermos entender por romantismo a expressão mais recente e mais moderna da beleza, para o crítico sensato e apaixonado o grande artista será, por conseguinte, aquele que juntar à condição acima exigida a ingenuidade – tanto romantismo quanto possível.

 

Charles Baudelaire, in «A Invenção Da Modernidade (Sobre Arte, Literatura e Música)». Tradução de Pedro Tamen, Colecção Clássicos Relógio D’Água.

 

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