Por entre histórias que ninguém deseja ouvir, como explicar tamanho fascínio? Incrédulo, sob o efeito sonâmbulo de uma música agridoce feita de devastadoras catedrais de violinos em desafio constante com abissais glaciares sonoros derretidos sob a lava incandescente de um coração a bater (ou a gemer?), assisto ao desenrolar contínuo de prosas roubadas a seres desfigurados pela mais dura experiência humana. Histórias de luz e de trevas, paixões em florestas negras, fugas e correrias desenhadas em busca de estranhos seres amados, adolescentes que se fazem homens nas mãos e nos jogos de mulheres mais experientes, dor e sofrimento à beira do abismo, mas sempre com a percepção de que, felizmente, mais cedo ou mais tarde, coisas mais importantes nos irão ajudar. E o mais incrível e espantoso desta autêntica descida ao inferno é que reside precisamente na música que a conta a nossa salvação. Se é a música mais desesperada de todas as que recordo, é, também, a mais sedutora.

Seja na orquestra saída de um sonho dos Divine Comedy em «the siren songs», seja na leve brisa sonora que nos afaga, docemente, a face, sobre uma construção dramática em registo Tindersticks (mas estes gajos estão em todo o lado?) na belíssima «Dinah and the beautiful blue», até se perceber que é ainda melhor que Tindersticks. Ou em quase tudo o que acontece no que resta. Desde a voz quente e profunda de Tim Buckley à majestosa arquitectura sonora que, muitas vezes no mais sublime e absoluto silêncio, ocupa de forma mais que perfeita o tempo e o espaço de uma canção, passando por gritos, sussurros, paragens e acelerações cardíacas por entre a assombrosa urgência do refrão de «where's the high?» e o espanto total de «all that numbs you». De menos memorável, e não há bela sem senão, encontro apenas duas músicas mais facilmente esquecíveis: «postcard» e «mesmerene».
E depois há «Betty Caine». Sim, Deus parece existir. Pelo menos durante aqueles três minutos e meio. «Betty Caine» é a mais espantosa, dilacerante, sedutora e ultra-romântica das canções. Explode no nosso coração entre dois versos e, por mais de uma vez, quase nos faz tocar o céu. Abandona-nos, sem rede, nas teclas solitárias de um piano rumo a uma estratosférica secção de cordas para, literalmente, nos deixar comover por não estarmos preparados para aceitar o deslumbramento da (des)harmonia quase sobrenatural que esta música nos oferece.
E se pretendo oferecê-la ao meu melhor amigo, a verdade é que, bem no meu íntimo, não desejo partilhá-la com mais ninguém. Genial.