Em 1953, Ray Bradbury escreveu uma surpreendente história sobre um regime totalitário imaginário que proíbe a leitura de livros numa civilização futurista, prendendo os seus possuidores e queimando as suas casas, bem como os respetivos livros. Essa indigníssima tarefa era executada por uma corporação de bombeiros que ateava fogos em vez de apagar incêndios. Fahrenheit 451 - assim se intitula esta engenhosa e concisa construção literária em cenário de ficção científica - denuncia eficazmente um modelo civilizacional inquietante no qual a felicidade e o bem-estar das pessoas são garantidos pela via do comodismo, da apatia, do vazio mental, da crença na futilidade e do conformismo no domínio das ideias e do conhecimento. Porém, para configurar essa sociedade amestrada, a classe dominante necessita de amordaçar e destruir a cultura, conhecida a capacidade desta para motivar a transgressão, abalar convicções, suscitar dúvidas, desenvolver a inteligência e modificar as acções e os comportamentos humanos. Perante o perigo de contágio, uma pequena seita de resistentes, escondidos numa paisagem desolada, reage ao medo e à destruição encarregando cada um dos seus membros de uma empreitada singular: decorar um livro para posterior recitação. Mas como Truffaut tão intensamente demonstrou - na magnífica e complexa adaptação cinematográfica do livro, em 1966 -, esse lugar ocupado por homens-livro, não é, contudo, menos inquietante, porque aquelas pessoas, não obstante a sua liberdade, deixaram de conhecer qualquer outro prazer que não seja o deleite exclusivo da recitação.