José Afonso, Cantigas do Maio (1971)
O disco que, a par dos extraordinários Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades de José Mário Branco e Os Sobreviventes de Sérgio Godinho, deixou para trás, definitivamente, as «baladas choradeiras» e trouxe a modernidade para o coração da música popular portuguesa. É nesta gravação fundamental que José Afonso introduz o surrealismo no seu reportório poético-musical (com um poema de António Quadros e outro da sua autoria) e que une, de um modo inovador e plenamente conseguido, a balada tradicional às sonoridades urbanas, contando, para o efeito, com a preciosíssima ajuda de José Mário Branco. Já tudo se sabe e tudo se disse sobre este clássico absoluto da música portuguesa, reservando-se a maior fatia de louvores para os prodigiosos arranjos/orquestrações de José Mário Branco que são o fruto natural da sua inesgotável riqueza de ideias para, através do uso minucioso da instrumentação, atingir a máxima expressividade artística em cada canção. Se todo o álbum é magnífico, existem, pelo menos, duas canções onde o talento intuitivo e melódico de José Afonso e a ousadia arquitectónica de José Mário Branco raiam o sublime: Maio Maduro Maio, que combina na perfeição beleza e lirismo poético com uma notável modernidade musical, sublinhada pelo som do trompete em surdina, e a assombrosa Coro da Primavera, com um notável trabalho de percussão que dramatiza com uma profundidade quase insustentável a estrutura musical e o canto da canção. Uma das raríssimas obras-primas da música portuguesa, da autoria de um músico que continuou a criar, durante os anos 70, uma obra de grande fulgor claramente acima da média nacional, cujos parâmetros de qualidade musical e ousadia estética só foram acompanhados - enquanto esperávamos pelo espírito aventureiro da música pop dos anos 80 - pelas gravações de Sérgio Godinho, José Mário Branco, Banda do Casaco e muito poucos mais.