Hoje venho falar sobre o último filme de David Cronenberg «Uma história de violência».
A história conta-se em pouco mais de duas linhas. Na vida de um casal aparentemente normal, depois de várias peripécias, descobre-se que o marido é um indivíduo com dupla personalidade, que procura esconder do resto da família um tenebroso passado de assassino, do qual só se vem a saber quando algumas das personagens que fizeram parte desse passado se intrometem e rompem com a harmonia e com a pacatez em que o casal vive.
Daí para a frente, tudo é sublime no filme. As noções mais básicas que aprendemos acerca da vida e daquilo que julgamos conhecer nas pessoas são, literalmente, postas em causa, plano após plano, ao percebermos que a mulher que ama aquele homem e que julga saber tudo sobre ele, nunca suspeitou que grande parte do que o marido lhe contava se baseava em mentiras e cuja existência era levada no fio da navalha. Arrasadora é a cena em que o filho mata um dos assassinos que tenta acabar com a vida do pai, o qual não sabe, naquele instante, se deve condenar o filho por se ter tornado, também ele, um assassino, ou se deve ficar eternamente grato por lhe ter salvo a vida.
Inesquecível é, depois, toda a sequência que descreve, com uma precisão clínica e quase maníaca, a desagregação física e psicológica que aquela família sofre e a desconfiança e rejeição a que todos votam o nosso herói a quem, a partir dali, só lhe resta uma solução: enterrar e acabar definitivamente com o passado e com a trupe de malfeitores que o enegrecem.
Mas absolutamente inclassificável é a cena final que nos mostra um dos mais belos e devastadores regressos a casa de que há memória. Após o ajuste de contas, o marido (que é uma mistura radical de anti-herói moderno com o clássico herói americano na melhor tradição de Hawks e de Nick Ray) volta para a família na esperança de reconstruir o seu lar. Mas o que ele tem para encarar são três rostos gélidos e terrivelmente acusadores a que ele responde com o olhar mais pungente e avassalador que, num grande plano, mostra, no mesmo instante, um profundo arrependimento e culpa, deixa escapar uma enorme sensação de vazio pela dor causada - e pela solidão a que chegou - e implora por uma nova oportunidade para tentar, desta vez, fazer tudo certo.
Depois da emoção mal contida, porque não estava preparado para este filme, ainda me sinto arrepiado. Para mim, foi mais do que um choque frontal. É para isto que serve o cinema.
Se Cronenberg já fez, talvez, melhor em «dead ringers» e foi mais complexo em «crash», nunca foi tão belo como aqui.
Filme do ano. De 2006, obviamente, porque eu já o vi atrasado.