a dignidade da diferença
05 de Janeiro de 2009

 

Devidamente enquadrado com o tempo de crise que vivemos, o qual, segundo parece, veio para ficar e para se agravar, eis uma óptima oportunidade – embora ele nem precisasse disso - para revisitarmos o «realismo mágico» do escritor mexicano Juan Rulfo (1918-1986).

Do autor já conhecia o premiado romance «Pedro Páramo» - publicado em 1955 -, mas, depois de devidamente aconselhado, só recentemente tive acesso ao magnífico livro de contos «A planície em chamas», originalmente editado em 1953, e traduzido por Ana Santos, para a Cavalo de Ferro, em 2003.

Tomando como exemplo o soberbo conto «É que somos muito pobres», Juan Rulfo conquista-nos pela absoluta mestria com que define, numa narrativa que se prolonga por quatro curtas páginas, o perfil psicológico das personagens que habitam as suas histórias estranhas, recheadas de assassinatos, de almas penadas mas capazes de amar, de intensa crueldade, miséria ou devassidão. Servindo-se de uma linguagem formalmente simples, mas profunda, inventina e carregada de um fulgor que lhe transmite uma inegável riqueza estética, o escritor mexicano retrata na perfeição os tormentos por que passa esta gente que procura, permanentemente, fugir a uma vida danada que a persegue e lhe morde, sem piedade e com veneno inusitado, os calcanhares feridos de morte.

As notáveis composições de Juan Rulfo oferecem-nos – numa bandeja ricamente trabalhada - um mundo complexo, geograficamente quase deserto, problemático e inóspito, onde se instalam seres humanos que tanto põem em causa Deus como se amparam Nele. Lidas de uma assentada, deixam-nos sem vontade de comer durante, pelo menos, uns dois dias.

Ah! tivesse o neo-realismo este fulgor e esta dinâmica voraz, em vez de se deixar consumir por textos cuja qualidade literária foi, regra geral, vítima de uma pobreza ainda maior que a das pessoas que os romances procuravam revelar.

 

 

Fica aqui um excerto de «É que somos muito pobres», traduzido, como já foi referido, por Ana Santos.

 

Aqui vai tudo de mal a pior. Na semana passada morreu a minha tia Jacinta, e no Sábado, quando já a tínhamos enterrado e começava a abalar-nos a tristeza, começou a chover como nunca. Ao meu papá isso irritou-o, porque toda a colheita de cevada estava a secar na eira. E o aguaceiro chegou de repente, em grandes ondas de água, sem sequer nos dar tempo para esconder nem que fosse um pequeno molho; a única coisa que pudemos fazer, todos os da minha casa, foi ficarmos arrimados uns aos outros debaixo do telheiro, vendo como a água fria que caía do céu queimava aquela cevada tão recém-cortada.

E só ontem, quando a minha irmã Tacha acabava de fazer doze anos, soubemos que a vaca que o meu pai lhe ofereceu para o dia do seu aniversário tinha-a levado o rio. (...) Foi ali que soubemos que o rio tinha levado a Serpentina, a vaca que era da minha irmã Tacha porque o meu papá lha ofereceu no dia do seu aniversário e que tinha uma orelha branca e outra avermelhada e muito bonitos olhos. (...) Nunca vi a Serpentina tão atarantada. O mais certo é ter vindo ainda a dormir para se deixar matar assim sem mais nem menos. A mim muitas vezes tocou-me acordá-la quando lhe abria a porta do curral, porque senão, por vontade dela, ali estaria o dia inteiro com os olhos fechados, bem quieta e suspirando, como se ouvem suspirar as vacas quando dormem.

 

 

E aqui deve ter acontecido isso, adormeceu. Talvez se tenha lembrado de acordar ao sentir que aquela água pesada lhe batia nas costelas. (...) Talvez tenha bramado pedindo que a ajudassem.

Bramou só Deus sabe como.

Eu perguntei a um senhor, que viu quando o rio a arrastava, se não tinha visto também o bezerrinho que andava com ela. Mas o homem disse que não sabia se o tinha visto. (...) O problema que há na minha casa é o que poderá acontecer no dia de amanhã, agora que a minha irmã Tacha ficou sem nada. Porque o meu papá com muito trabalho tinha conseguido a Serpentina, ainda ela era uma vitelinha, para dar à minha irmã, a fim de que ela tivesse um capitalzinho, e não se tornasse puta como fizeram as minhas outras duas irmãs, as maiores. (...)

A minha mamã não sabe porque é que Deus a castigou tanto dando-lhe umas filhas assim, quando na sua família, da sua avó para cá, nunca houve gente má. (...) Quem sabe de onde lhes viria, a esse par de filhas suas, aquele mau exemplo. (...) E cada vez que pensa nelas, chora e diz: «Que Deus as ampare às duas.»

Mas o meu pai alega que aquilo já não tem remédio. A perigosa é a que fica aqui, a Tacha, que vai como tronco de pinheiro, cresce e cresce e já tem uns princípios de seios que prometem ser como os das suas irmãs (...) E a Tacha chora ao sentir que a sua vaca não voltará porque lha matou o rio. (...) Pela sua cara correm jorros de água suja como se o rio se tivesse metido dentro dela.

Eu abraço-a tentando consolá-la, mas ela não percebe. (...) Da sua boca sai um ruído semelhante ao que se arrasta pelas margens do rio (...) O sabor a podre que vem de lá salpica a cara molhada da Tacha e os dois peitinhos dela mexem-se de cima para baixo sem parar como se de repente começassem a inchar para começarem a trabalhar pela sua perdição.

 

 

 

Obrigado, Ana Cristina Leonardo.

 

E aproveitando o ambiente mexicano, uma vez que este é um blog (quase sempre) sobre música, deixo-vos com:

 

 

 Lhasa "Abro la ventana"

 

publicado por adignidadedadiferenca às 21:06 link do post
Já chegaram os filmes Rui! Não foram interceptados por nenhum elemento obscuro da maçonaria do expresso. Obrigado!!!
Manuel a 7 de Janeiro de 2009 às 17:47
Já andava a desconfiar do Ricardo Saló...
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