Morreu, com 71 anos de idade, Lou Reed. Um músico genial, inventor, entre outras coisas, com os Velvet Underground, do conceito de música alternativa e criador de um estilo tantas vezes imitado: a poesia underground, uma visão da música simultaneamente selvagem, primitiva, lírica e erudita, o olhar cínico, sombrio e realista de cronista contemporâneo, o canto quase falado e uma maneira original, económica, rugosa, seca e, por vezes, brutal, de retocar os três acordes básicos do rock’n’roll. Para a história da música popular ficam, no mínimo, com os Velvets, The Velvet Underground & Nico, White Light/White Heat, VU ou Live MCMXCIII. A solo ficam, por sua vez, Transformer, New York, Songs For Drella (escrito a meias com John Cale, o seu irmão desavindo), Magic And Loss ou The Raven (talvez a sua obra-prima). Mas seria imperdoável esquecer álbuns do calibre do terceiro dos Velvet Underground, de Street Hassle e The Blue Mask (estes dois últimos a solo); ou ainda um punhado de grandes canções irregularmente distribuídas por cerca de três dezenas de álbuns.
Revistos pelo seu autor em 1969, o conjunto dos poemas de Jorge Luis Borges reunidos nas obras O Fervor de Buenos Aires, Lua Defronte e Caderno San Martin, escritos na sua juventude, foram recentemente publicados pela Quetzal no primeiro volume da sua Obra Poética. Não conseguindo esconder, aqui e ali, algumas marcas da inocência e do excesso de convicções próprios da juventude, os poemas do genial escritor argentino, depois de minuciosamente depurados, isto é, devidamente limados nos seus excessos ou extravagâncias formais, libertados de tudo o que é supérfluo e afastados na medida correta os inconvenientes da sobrecarga de sentimentalismo, não desonram, contudo, o seu autor e revelam até, no seu melhor, a originalidade, o lirismo, o prazer do exercício intelectual, a sabedoria, a serenidade ou a plasticidade da sua escrita, e ainda um par de outras características modernistas do autor, facilmente reconhecíveis no período áureo da sua criatividade e maturidade estética cuja estrutura metafísica convoca para o seu universo literário alguns dos grandes temas universais. Deixo-vos, como exemplo, o poema Manuscrito Achado Num Livro de Joseph Conrad, traduzido por Fernando Pinto do Amaral.
Nas terras que estremecem com o ardor estival,
O dia é invisível, puro e branco. O dia
é uma estria pungente numa gelosia,
uma febre no plaino, um fulgor litoral.
Porém, a antiga noite é funda como um jarro
de água côncava, aberta a infinitos sinais,
e em canoas, perante as estrelas fatais,
o homem mede o vago tempo com um cigarro.
Com o fumo desvanecem-se as constelações
remotas. O imediato perde história e nome.
O mundo é umas quantas vãs imprecisões.
O rio, primeiro rio. O homem, primeiro homem.
Dos lugares que os homens criaram para se abrigar, o café é o que mais rua tem. Por isso, Mário Cesariny gostava tanto de cafés. Aí, sentia-se onde a poesia estava, onde «sempre esteve». Aí, lembrando Lautréamont, podia fazê-la em comum. Foi em cafés que escreveu os poemas. Foi em cafés que conversou com os amigos e até com os inimigos. Foi em cafés que fitou os corpos com um olhar que os tornava mais visíveis. Era nos cafés, e no que eles tinham de rua, que se sentia verdadeiramente em casa. Cafés cheios de fumo e de fadiga e de fuga e de fúria. Cafés onde se estava porque não havia sítio melhor para estar. Cafés que resumiam o seu entendimento da vida: café-manicómio, café-convés, café-asilo, café-escritório, café quase salão e, pois claro!, café-de-engate. Viciado em cafés, nunca o vi aí tomar um café. Pedia uma água mineral e, muitas vezes, usava-a para lavar as mãos, porque desconfiava que, depois de bebida, a garrafa era enchida pelo dono da casa. Ria e, enquanto a vertia nos dedos em ablução ritual, olhava à volta para a «malandragem» que habitava as mesas e exclamava: «A água é a única coisa que não é de confiança neste café». Nos tempos gloriosos do grupo surrealista, era nos cafés (Herminius, Royal, Gelo) que se incendiavam a eles próprios e era a partir dos cafés que queriam incendiar o mundo. Depois, toda a sua vida foi vivida, nocturnamente, em cafés, até que os cafés acabaram e ele começou a acabar como eles.
José Manuel dos Santos, O Espelho Vazio
Uma boa versão de uma canção não necessita obrigatoriamente de ter um conceito teórico a sustentá-la. Podemos, porém, conduzir as praticamente inesgotáveis formas de reinterpretar uma canção a estas três ideias-chave: a mera cópia, assente numa atitude excessivamente cerimoniosa perante as sagradas escrituras, a qual acaba consumida pela sua absoluta inutilidade; a releitura personalizada (mais ou menos conseguida) que, sem abalar significativamente o espírito inicial da canção, traz novos elementos para o corpo desta, materializando-se numa reconfiguração da sua matriz original; e, por fim, a pura iconoclastia, cujos resultados se traduzem numa apropriação total do objeto reinterpretado.
Considerações teóricas à parte, na medida em que, em última análise, acaba por ser no plano prático que nos apercebemos verdadeiramente da qualidade (ou da falta dela) de uma versão, começo este novo capítulo apresentando a reinterpretação de Jezebel, a cargo de Anna Calvi (de quem, a propósito, acaba de chegar um novíssimo e esplêndido álbum). Podemos, deste modo, comparar a sua versão com a hiperclássica leitura nas mãos (e na voz) de Edith Piaf, talvez a mais conhecida das muitas gravações desta peça musical. Sem demolir nem fazer esquecer os méritos da leitura de Piaf, Anna Calvi acrescenta-lhe uma energia porventura superior e uma mise-en-scène operática que não existia na versão anterior. Uma reconfiguração exemplar.
Jacques Rancière, um dos mais estimulantes pensadores contemporâneos no domínio da filosofia, da história ou da política, manteve uma relação muito próxima com o cinema. Afastando-se do papel de filósofo ou de crítico, é enquanto amante da sétima arte que decide escrever Os Intervalos do Cinema, uma abordagem assaz singular à sua relação com o objeto cinematográfico, definindo-a como um conjunto de «encontros e intervalos entre cinema e arte, entre cinema e política, e entre cinema e teoria». Quando escreve sobre cinema, Rancière exibe a sua vocação, os seus modelos narrativos, a sua relação com a literatura e as suas ambiguidades ou contradições, recorrendo sistematicamente à riqueza e à diversidade dos universos estéticos de autores maiores como Godard, Hitchcock, Rossellini, Minnelli, Vertov, Pedro Costa, Bresson ou Straub (e Huillet). Merece a pena destacar, a título meramente exemplificativo, uma curtíssima passagem da sua prosa, a qual resume bem a relação entre o cinema e a política, assim como a função de cada um deles:
«O cinema não apresenta um mundo que outros teriam de transformar. Faz, à sua maneira, a conjunção do mutismo dos factos e do encadeamento das acções, da razão do visível e da sua simples identidade ensimesmada. É à política, nos seus próprios cenários, que cabe construir a eficácia política das formas da arte. O mesmo cinema que proclama, em nome dos revoltados, “O amanhã pertence-nos”, assinala também que não pode oferecer outros amanhãs senão estes que são os seus. É isto que Mizoguchi nos mostra num outro filme, O Intendente Sansho, que conta a história da família de um governador de província afastado do seu cargo devido à sua solicitude para com os camponeses oprimidos. A sua mulher é raptada e os seus filhos vendidos como escravos para trabalharem numa mina. Para que o seu filho Zushio possa escapar, a fim de ir ter com a mãe ao cativeiro e cumprir a palavra dada libertando os escravos, a irmã de Zushio, Anju, afunda-se lentamente nas águas de um lago. Mas este cumprimento da lógica da acção é também a sua bifurcação. Por um lado, o cinema participa no combate pela emancipação, por outro, dissipa-se em círculos na superfície de um lago. É esta dupla lógica que Zushio irá por sua vez retomar, ao demitir-se das suas funções, uma vez libertados os escravos, para ir ter com a mãe, cega, na sua ilha. Todos os intervalos do cinema podem resumir-se no movimento pelo qual o filme que acaba de encenar o grande combate pela liberdade nos diz, num derradeiro plano panorâmico: - Eis os limites do que eu posso. O resto pertence-vos.»
Jacques Rancière, Os Intervalos do Cinema (tradução: Luís Lima), Ed. Orfeu Negro.