«A arte de desenvolver os pequenos motivos para nos decidirmos a realizar as grandes acções que nos são necessárias. A arte de nunca nos deixarmos desencorajar pelas reacções dos outros, recordando que o valor de um sentimento é juízo nosso, pois seremos nós a senti-lo e não os que assistem. A arte de mentir a nós próprios, sabendo que estamos a mentir. A arte de encarar as pessoas de frente, incluindo nós próprios, como se fossem personagens de uma novela nossa. A arte de recordar sempre que, não tendo nós qualquer importância e não tendo também os outros qualquer espécie de importância, nós temos mais importância do que qualquer outro, simplesmente porque somos nós. A arte de considerar a mulher como um pedaço de pão: problema de astúcia. A arte de mergulhar fulminante e profundamente na dor, para vir novamente à tona graças a um golpe de rins. A arte de nos substituirmos a qualquer um, e de saber, portanto, que cada pessoa se interessa apenas por si própria. A arte de atribuir qualquer dos nossos gestos a outrem, para verificarmos imediatamente se é sensato. A arte de viver sem a arte. A arte de estar só.»
Cesare Pavese, O Ofício de Viver.
Há qualquer coisa de novo no fado tradicional de Gisela João. Não é bem o timbre da sua voz pois este identifica-se bastante com o da voz de Amália, embora já impressionem a forma inesperada como Gisela João se serve da força bruta das cordas vocais e o modo como jorram as emoções à flor da pele. A escolha do reportório também não surpreende, visto que Gisela opta por um conjunto bastante fiel ao fado clássico. Porém, a sua fidelidade à tradição fica-se por aí dado que já é francamente invulgar a eficácia com que a cantora se apropria dos fados escolhidos; atira-se aos seus órgãos vitais, reduz a matéria musical ao essencial e apenas permite que os seus ouvintes escutem a batida do coração, o sopro desmedido da alma à beira do abismo e a gramática singular das malhas quase folk/rock das guitarras. Uma estreia promissora, magnífica e apta a ficar gravada na nossa memória. Um sinal, em suma, do bom momento que o fado atravessa, como testemunha ainda o mais recente trabalho de Pedro Moutinho, O Amor Não Pode Esperar.
A juventude de Marling ou a veterania de Parks. A instrumentação quase elementar da primeira ou o requinte orquestral e a maestria dos arranjos do segundo. A folk intensa e concisa de Laura Marling ou as sinfonias de bolso de Van Dyke Parks. Se a ideia parece consistir no confronto entre estes dois estilos de música aparentemente tão antagónicos, esse raciocínio está, porém, bem longe da verdade. Entre o percurso musical com origens na tradição folk, o crescimento precoce, a concisão, a clareza, a economia de meios, as emoções que jorram da matéria ficcional, o brio e a expressividade vocal de Laura Marling ou a sabedoria e a visão panorâmica, cinematográfica, majestosamente orquestral - na qual todas as peças se encaixam brilhantemente numa estrutura musical ilusoriamente fragmentada - do magnífico e injustamente pouco celebrado Van Dyke Parks, não é necessário optar: o melhor é escolher os dois. Escutem então (sem pausas) as suas mais recentes e meritórias gravações; o depuradíssimo e intenso Once I Was An Eagle de Laura Marling e o versátil e colorido Songs Cycle de Van Dyke Parks.