Voltei a pegar no catálogo editado pela Cinemateca Portuguesa, com a autorização da Fundação Calouste Gulbenkian, intitulado In Alfred Hitchcock’s e dedicado ao genial cineasta. Agora que Hitchcock voltou a estar na moda (embora não se possa dizer que ele alguma vez tenha ficado verdadeiramente esquecido) - Vertigo, por exemplo, conquistou o primeiro lugar na mais recente votação para o melhor filme de sempre, promovida em cada década pela revista britânica Sight & Sound. E, recentemente, também esteve em cartaz o filme Hitchcock, retrato bastante sofrível, aliás, da sua personalidade e do período correspondente às gravações do hiperclássico Psycho, com um razoável Anthony Hopkins no papel do mestre do suspense -, não me parece despropositada a ideia de recordar agora duas das suas regras básicas sobre cinema. Enquanto a primeira se refere à adaptação de obras literárias importantes, a segunda consiste na distinção entre suspense e surpresa. Ambas foram reveladas no célebre livro de entrevistas a Truffaut, responsável pela ascensão crítica do cineasta. Passo então a citar:
«Fala-se muitas vezes de cineastas que, em Hollywood, deformam a obra original. Sempre foi minha intenção nunca o fazer. Leio a história só uma vez. Quando a ideia de base me convém, adoto-a, esqueço completamente o livro e faço cinema. Era completamente incapaz de lhe contar Os Pássaros de Daphne du Maurier. Só li o livro uma vez, a correr. O que não percebo é como se consegue pegar numa obra, num bom romance que o autor levou três ou quatro anos a escrever, onde pôs toda a sua vida. Mexe-se naquilo tudo, aldraba-se, arranjam-se meia dúzia de artífices e técnicos de qualidade e pronto, candidatura aos óscares e o autor submergido por tudo aquilo, ao fundo. Ninguém já pensa nele». E ainda: «Está-se a falar, pode haver uma bomba debaixo da mesa, a conversa não tem nada de especial, não se passa nada de anormal e, de repente, bum, bum. O público fica surpreendido, mas antes de o ficar, tínhamos-lhe mostrado uma cena absolutamente vulgar, sem nenhum interesse particular. Agora, vejamos o suspense. A bomba está debaixo da mesa e o público sabe que a bomba vai explodir à 1 hora e que é 1 menos um quarto (há um relógio no décor). A mesma conversa anódina torna-se apaixonante porque o público participa na cena. Tem vontade de dizer aos personagens que estão na tela: ”deixem-se de conversa de trapos, há uma bomba debaixo da mesa, a bomba vai explodir”. No primeiro exemplo, deu-se ao público quinze segundos de surpresa no momento da explosão. No segundo caso, damos-lhe quinze minutos de suspense».
«O relativismo existe desde a antiguidade, do que é testemunha o Teeteto, de Platão (152a), mas sempre representou uma filosofia entre outras. Tornou-se dominante apenas no nosso tempo. Comporta uma multidão de variantes, entre as quais reconhecemos sempre uma certa familiaridade. O relativismo cognitivo assegura que não há certezas em matéria de representação do mundo. Segundo o relativismo estético, os valores artísticos seriam um efeito da moda ou do snobismo. Para o relativismo normativo, as normas seriam convenções culturais arbitrárias. (…) Como todos os ismos, o relativismo tem também influência social e política. Ao afirmar que tudo é opinião e convenção arbitrária, favorece a perda de referências e justifica a representação da vida social como resultado de força e, em todo o caso, da sedução mais que da persuasão. Em contrapartida, ao insistir na diversidade e na igual dignidade das crenças, favorece o respeito pelo outro.» Raymond Boudon introduz assim o relativismo na sua qualidade de doutrina dominante no mundo ocidental. Questionando as suas convicções e consequências, a sua perspetiva sobre o conhecimento, as regras e os valores, o filósofo e sociólogo francês divide-o em bom e mau relativismo. O bom demonstra porque temos opiniões e ponderações diferentes sobre idênticas situações em função dos distintos contextos sociais e mentais. O mau pretende que a diversidade das regras e das situações fabricadas pelo homem fiquem gravadas sem ser necessário entendê-las. Dispondo de uma capacidade argumentativa sucinta e rigorosa, elaborando o texto em pequenas frases com o ritmo adequado, focado nas questões essenciais e assente numa evidente clareza de raciocínio, Boudon leva a sua argumentação admiravelmente até ao fim.
César Deve Morrer: a arte como expressão sublime da liberdade numa peça de Shakespeare (Júlio César) representada e encenada por um grupo de presos. Após a máxima expressão artística, acontece a recolha à pequenez das suas vidas no momento em que as luzes se apagam. Eis um belíssimo retrato sobre a forma como aquelas vidas vazias se transformam e se complementam precisamente num dos locais mais imprevistos. Faltei à estreia do filme quando aquela ocorreu nas salas de cinema mas agora não deixei que este me escapasse (na recente edição em DVD da Alambique). Uma obra meritória, expressiva e particularmente inesperada sobre a angústia e a conduta humana, cujo maior feito formal será porventura o prodígio da montagem na transformação do ambiente claustrofóbico da prisão na dimensão luxuriante dos salões romanos. Onde menos se esperava, o cinema contemporâneo possui essa capacidade rara de se reinventar. Quem o assinou foram os irmãos Taviani. Para que conste.