a dignidade da diferença
25 de Maio de 2013

Antes da reforma do Código Civil de 1977, a maioridade civil atingia-se na data em que uma pessoa perfizesse os 21 anos de idade. A nova redação do art.º 122.º do Código Civil antecipou a maioridade civil para o momento em que uma pessoa tiver completado os 18 anos. A nossa lei civil seguiu o exemplo das leis francesa e alemã de 1974 e da lei italiana de 1975, cuja solução também já fora consagrada pela lei inglesa em 1969 e foi igualmente acolhida nas leis sueca e dinamarquesa, vigorando ainda na generalidade dos países do leste europeu. É ainda, por exemplo, a idade fixada pela nossa Constituição para a aquisição da capacidade eleitoral activa e passiva (atualmente prevista no art.º 49.º, n.º 1). «Podendo ser-se deputado com 18 anos, mal pareceria», como referem os Profs. Antunes Varela e Pires de Lima, «que se continuasse a entender que só depois dessa idade se adquiria plena capacidade para reger a própria pessoa e dispor dos próprios bens». Ainda segundo aqueles reputados civilistas, «a razão mais determinante prende-se com o facto dos jovens se encontrarem sujeitos a um processo mais acelerado de desenvolvimento psíquico e cultural a que não é alheia uma soma incomparavelmente maior de conhecimento sobre o mundo que os envolve». Considera-se ainda os 18 anos como o momento em que há acordo científico sobre o pleno desenvolvimento biológico. A base desta opção, como salienta o legislador (Dec-Lei n.º 496/77, de 25/11), está no «reconhecimento de que os jovens estão sujeitos a um mais rápido processo de desenvolvimento psíquico e cultural e obtiveram uma autonomia a que deve corresponder a inerente responsabilidade». Por sua vez, a maioridade penal atinge-se no momento em que se completam os 16 anos de idade, sendo inimputáveis os menores de 16 anos (art.º 19.º do Código Penal). O regime jurídico aplicável aos jovens entre os 12 e os 16 anos de idade consta da Lei Tutelar Educativa (LTE). Esta tem como finalidade reeducar o jovem para o direito. Os seus pressupostos e objetivos consistem na subtração do adolescente às consequências negativas de uma condenação penal idêntica à de um adulto.
 
 
Nas palavras de Isabel Luís do Couto, retiradas da sua tese de mestrado, «a lei segue a par com a responsabilização do menor e sua educação para o Direito». Segundo o art.º 9.º do Código Penal, são aplicáveis nesta idade normas fixadas em legislação especial. Por conseguinte, quem tem entre 16 e 21 anos está sujeito a um regime específico: o Regime dos Jovens Adultos, que consta do Dec-Lei n.º 401/82, de 23 de setembro. Já está, contudo, enquadrado na imputabilidade penal. A responsabilização penal exige que sobre o agente recaia um juízo de censura, ou seja, que haja uma culpa concreta do agente. Não basta que pratique o crime, tem que ser culpado do crime. Porém, para fundamentar esse juízo de censura de culpa, é preciso que o agente, no momento em que atua, não esteja diminuído na sua liberdade de decisão ou de avaliação. E esse juízo de censura, segundo, por exemplo, o Prof. Figueiredo Dias, não pode ser feito quando o agente revela uma insuficiente maturidade psíquica e espiritual que não foi ainda atingida em virtude da idade. Ou seja, o limite de idade da imputabilidade penal assenta na presunção de que o agente não possui ainda o desenvolvimento biológico, psicológico, social e estrutural para entender plenamente os seus comportamentos ou orientar as suas atitudes de acordo com a sua compreensão. Porque não deve baixar para os 16 anos a capacidade civil? Porque, em primeiro lugar, apesar da soma maior de conhecimentos sobre o mundo que os rodeia, continua a entender-se que os jovens ainda não amadureceram a sua personalidade e que o seu desenvolvimento biopsicológico não é suficiente para assumir as responsabilidades inerentes à capacidade civil que reclamam. O mesmo entendimento estende-se à capacidade eleitoral ativa e passiva; os adolescentes ainda têm uma capacidade limitada para tomar decisões. Em segundo lugar, porque se verifica, por exemplo, que os argumentos utilizados pelos defensores do direito de voto a partir dos 16 anos incidem excessivamente no combate à abstenção, no incentivo à sua participação política e pecam por desvalorizar essa questão essencial que é a falta de maturidade dos jovens para assumir uma responsabilidade que não compreendem ainda em toda a sua extensão. Pergunta-se até, face ao seu evidente entusiasmo juvenil, se os defensores destas propostas não estarão a passar por uma fase de adolescência tardia.
 
 
E porque, além do mais, os exemplos que podemos ilustrar dos países onde a capacidade eleitoral ativa começa aos 16 anos, a Áustria e uma parte significativa dos países da América do Sul (com o Brasil à cabeça), contrariam esses fundamentos. Os resultados das mais recentes eleições confirmam que os jovens desses países, após um entusiasmo inicial já esperado, sentem a mesma frustração e a mesma descrença dos restantes eleitores. A queda da abstenção por esses motivos não passa dum mito. Porque deve aumentar para os 18 anos a imputabilidade penal? Porque, faltando, como já vimos, capacidade aos jovens para lhes serem atribuídos direitos civis e políticos enquanto não completarem os 18 anos de idade, não se pode aceitar que antes de atingirem essa idade os jovens tenham capacidade de culpa, pois o processo de formação e de amadurecimento da sua personalidade é precisamente o mesmo. Como salienta Maria João Leote de Carvalho, «não se pode fragmentar a conceção de jovem quando está em causa a mais grave intervenção do Estado relativamente à restrição de dois direitos fundamentais: a liberdade e a autodeterminação individual». Porque existe ainda um problema de compatibilização da intervenção tutelar com a atuação penal nos casos em que um jovem que está a cumprir a medida tutelar comete um crime depois de ter completado os 16 anos; problema que a atual política criminal não resolve e que leva autores como Anabela Rodrigues e Duarte Fonseca, especialistas em Direito de menores, ou o Prof. Figueiredo Dias, a considerar que «seria desejável elevar a idade da imputabilidade para os 18 anos». Porque mesmo os autores que defendem, como Taipa de Carvalho, a imputabilidade penal aos 14 anos de idade, alegando que «há muitos jovens com essa idade que já compreendem a ilicitude dos seus atos», esses autores não conseguem afastar a convicção de que a capacidade de culpa do menor é fundamental e esta exige um determinado desenvolvimento biopsicológico e sociocultural que dificilmente se atinge com aquela idade. Porque na entrevista feita por Isabel Luís do Couto na sua tese de mestrado à psicóloga do Centro Educativo de Santa Clara, esta demonstra que «existe um grande desfasamento entre a idade real e a maturidade emocional e cognitiva dos jovens internados», o que reforça ainda mais a ideia de incapacidade culposa. Porque, neste período de formação, a aplicação de um regime educativo é mais eficaz do que sujeitar o menor a um regime punitivo, na medida em que este não possui ainda o desenvolvimento biopsicológico e social necessário para compreender toda a amplitude da finalidade da punição.
 

 

Porque, apesar do regime especial aplicável aos jovens maiores de 16 anos e menores de 21 anos prever uma atenuação especial da pena quando se entenda que da mesma resultem vantagens para a sua reinserção social, a verdade é que esta medida nunca retira ao jovem o estigma resultante do convívio na mesma prisão com os adultos face ao aumento do perigo de reincidência e incremento de personalidades e carreiras criminais que esta representa. E, finalmente, porque segundo o Relatório Anual de Segurança Interna, embora se tenha registado um aumento significativo de casos de delinquência juvenil do ano de 2009 para 2010, em 2011 verificou-se uma redução acentuada (cerca de 50%) do mesmo tipo de casos. Ora, não tendo havido neste período qualquer alteração de política criminal, não se pode concluir que haja um nexo de causalidade entre o acréscimo de medidas punitivas e a diminuição da criminalidade dos jovens. Mesmo para quem tenha mais sensibilidade para as questões de segurança e defesa dos bens jurídicos (e com toda a legitimidade, uma vez que nesta matéria também entramos no domínio dos direitos fundamentais), é errado concluir que trocar a prisão pelo centro educativo conduz a uma falta de segurança e de responsabilidade, pois num centro educativo também há e deve haver restrições à liberdade. Em suma, e como bem refere Maria do Carmo Peralta, da Comissão de Acompanhamento e Fiscalização dos Centros Educativos, «antes de atingir os 18 anos, um cidadão não pode votar nem ser eleito, não pode, por exemplo, casar-se, conduzir automóveis ou assinar um contrato. Não se reconhece ao menor de 18 anos maturidade para assumir determinados compromissos. Mas já se reconhece, por outro lado, total discernimento em matéria penal. Um cidadão é julgado como um adulto aos 16 anos e, embora a pena possa ser atenuada, é preso como um adulto.» É por todas estas razões que defendo a coincidência entre a maioridade penal e a maioridade civil, aumentando neste caso a maioridade penal para o momento em que o indivíduo completa os 18 anos de idade. Mas esta alteração da maioridade penal não deve ser irresponsável e exige necessariamente uma reforma da Lei Tutelar Educativa: deve prever o aumento do período de internamento, como já acontece, por exemplo, no Direito Espanhol e deve acrescentar um período de liberdade vigiada, ideias aliás apresentadas por Isabel Luís do Couto, além da necessária alteração do mapa de centros educativos de modo a receber os jovens que não engrossariam as cadeias. Para os mais resistentes deixo as últimas palavras: se pensarem, por exemplo, numa situação em que seja um filho vosso, adolescente e, como tal, ainda em processo de formação da sua personalidade, a praticar um facto ilícito, talvez essa maior proximidade e esse confronto mais direto com a essência da questão vos faça refletir um pouco mais e aceitem melhor a ideia de que a intervenção educativa é mais adequada do que a ação punitiva. Pensem nisso.
20 de Maio de 2013

 

 

Voltei a pegar no catálogo editado pela Cinemateca Portuguesa, com a autorização da Fundação Calouste Gulbenkian, intitulado In Alfred Hitchcock’s e dedicado ao genial cineasta. Agora que Hitchcock voltou a estar na moda (embora não se possa dizer que ele alguma vez tenha ficado verdadeiramente esquecido) - Vertigo, por exemplo, conquistou o primeiro lugar na mais recente votação para o melhor filme de sempre, promovida em cada década pela revista britânica Sight & Sound. E, recentemente, também esteve em cartaz o filme Hitchcock, retrato bastante sofrível, aliás, da sua personalidade e do período correspondente às gravações do hiperclássico Psycho, com um razoável Anthony Hopkins no papel do mestre do suspense -, não me parece despropositada a ideia de recordar agora duas das suas regras básicas sobre cinema. Enquanto a primeira se refere à adaptação de obras literárias importantes, a segunda consiste na distinção entre suspense e surpresa. Ambas foram reveladas no célebre livro de entrevistas a Truffaut, responsável pela ascensão crítica do cineasta. Passo então a citar:

 

 

«Fala-se muitas vezes de cineastas que, em Hollywood, deformam a obra original. Sempre foi minha intenção nunca o fazer. Leio a história só uma vez. Quando a ideia de base me convém, adoto-a, esqueço completamente o livro e faço cinema. Era completamente incapaz de lhe contar Os Pássaros de Daphne du Maurier. Só li o livro uma vez, a correr. O que não percebo é como se consegue pegar numa obra, num bom romance que o autor levou três ou quatro anos a escrever, onde pôs toda a sua vida. Mexe-se naquilo tudo, aldraba-se, arranjam-se meia dúzia de artífices e técnicos de qualidade e pronto, candidatura aos óscares e o autor submergido por tudo aquilo, ao fundo. Ninguém já pensa nele». E ainda: «Está-se a falar, pode haver uma bomba debaixo da mesa, a conversa não tem nada de especial, não se passa nada de anormal e, de repente, bum, bum. O público fica surpreendido, mas antes de o ficar, tínhamos-lhe mostrado uma cena absolutamente vulgar, sem nenhum interesse particular. Agora, vejamos o suspense. A bomba está debaixo da mesa e o público sabe que a bomba vai explodir à 1 hora e que é 1 menos um quarto (há um relógio no décor). A mesma conversa anódina torna-se apaixonante porque o público participa na cena. Tem vontade de dizer aos personagens que estão na tela: ”deixem-se de conversa de trapos, há uma bomba debaixo da mesa, a bomba vai explodir”. No primeiro exemplo, deu-se ao público quinze segundos de surpresa no momento da explosão. No segundo caso, damos-lhe quinze minutos de suspense». 

12 de Maio de 2013

 

 

«O relativismo existe desde a antiguidade, do que é testemunha o Teeteto, de Platão (152a), mas sempre representou uma filosofia entre outras. Tornou-se dominante apenas no nosso tempo. Comporta uma multidão de variantes, entre as quais reconhecemos sempre uma certa familiaridade. O relativismo cognitivo assegura que não há certezas em matéria de representação do mundo. Segundo o relativismo estético, os valores artísticos seriam um efeito da moda ou do snobismo. Para o relativismo normativo, as normas seriam convenções culturais arbitrárias. (…) Como todos os ismos, o relativismo tem também influência social e política. Ao afirmar que tudo é opinião e convenção arbitrária, favorece a perda de referências e justifica a representação da vida social como resultado de força e, em todo o caso, da sedução mais que da persuasão. Em contrapartida, ao insistir na diversidade e na igual dignidade das crenças, favorece o respeito pelo outro.» Raymond Boudon introduz assim o relativismo na sua qualidade de doutrina dominante no mundo ocidental. Questionando as suas convicções e consequências, a sua perspetiva sobre o conhecimento, as regras e os valores, o filósofo e sociólogo francês divide-o em bom e mau relativismo. O bom demonstra porque temos opiniões e ponderações diferentes sobre idênticas situações em função dos distintos contextos sociais e mentais. O mau pretende que a diversidade das regras e das situações fabricadas pelo homem fiquem gravadas sem ser necessário entendê-las. Dispondo de uma capacidade argumentativa sucinta e rigorosa, elaborando o texto em pequenas frases com o ritmo adequado, focado nas questões essenciais e assente numa evidente clareza de raciocínio, Boudon leva a sua argumentação admiravelmente até ao fim.

01 de Maio de 2013

 

 

César Deve Morrer: a arte como expressão sublime da liberdade numa peça de Shakespeare (Júlio César) representada e encenada por um grupo de presos. Após a máxima expressão artística, acontece a recolha à pequenez das suas vidas no momento em que as luzes se apagam. Eis um belíssimo retrato sobre a forma como aquelas vidas vazias se transformam e se complementam precisamente num dos locais mais imprevistos. Faltei à estreia do filme quando aquela ocorreu nas salas de cinema mas agora não deixei que este me escapasse (na recente edição em DVD da Alambique). Uma obra meritória, expressiva e particularmente inesperada sobre a angústia e a conduta humana, cujo maior feito formal será porventura o prodígio da montagem na transformação do ambiente claustrofóbico da prisão na dimensão luxuriante dos salões romanos. Onde menos se esperava, o cinema contemporâneo possui essa capacidade rara de se reinventar. Quem o assinou foram os irmãos Taviani. Para que conste.

 

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