a dignidade da diferença
31 de Março de 2012

 

«O resultado é que Poeira da Alma, que se inicia com as questões mais básicas acerca da natureza da perceção e da sensação conscientes, torna-se uma obra sobre a evolução da espiritualidade e sobre o modo como os humanos se instalaram naquilo a que chamo o nicho da alma. Embora eu não tenha qualquer crença no sobrenatural, não apresento desculpas para repor na alma onde estou certo de que é o seu lugar: no centro dos estudos da consciência. Mesmo assim, embora a obra termine debruçando-se sobre muitas preocupações humanas familiares, não se deve esperar que seja de leitura fácil. Houve trabalho que tive de desenvolver, e também será necessário que o leitor faça o mesmo. As respostas a que chego são por certo distintas das que a ciência tem apresentado. Tenho de admitir que, por si só, isto não é uma recomendação. Por certo que a ciência pretende ser mais cumulativa do que revolucionária. Porém, quando a investigação anterior sobre a consciência não produziu quase nada como resposta às grandes interrogações das pessoas sobre o mistério da sua experiência, talvez já não possamos continuar a confiar na ciência como estamos acostumados a fazer. O mundo material dotou os seres humanos de almas mágicas. As almas humanas retribuíram o favor, lançando um sortilégio sobre o mundo. Para compreender esses factos assombrosos, convido-vos a dar início à leitura.»

«Poeira da Alma», de Nicholas Humphrey, tradução de Ana Falcão Bastos

25 de Março de 2012

 

O genérico para filmes atingiu, na visão original e genial de Saul Bass, um novo e exigente patamar, conquistando uma nova dimensão e dignidade enquanto meio autónomo de expressão artística. Em dois minutos, Saul Bass resumia a essência do filme que antecipava, executando um trabalho gráfico e visual conciso, temático e vigoroso, notoriamente influenciado pelo surrealismo e pelo construtivismo russo, cujo precioso design introduzia, com assinalável regularidade, uma densidade psicológica rara neste tipo de exercício - essencial, por exemplo, na sua colaboração com Alfred Hitchcock -, no qual sobressaía um apuradíssimo sentido estético e uma enorme beleza plástica. Ian Albinson recordou o seu magnífico trabalho - cujos elementos dissonantes conferem à sua obra uma novidade, uma dinânima e um ritmo muito próprios - nesta montagem (ou, melhor, compilação) que lhe faz uma mais que merecida homenagem (roubado aqui).

 

The Title Design of Saul Bass de Ian Albinson.

publicado por adignidadedadiferenca às 16:12 link do post
22 de Março de 2012

Out of Tuva (1993), Sainkho

 


Equilíbrio quase sobrenatural entre tecnologia e tradição, Out of Tuva é o assombroso resultado do inesperado encontro ocorrido entre Hector Zazou e a sul-siberiana Sainkho Namtchylak, cuja voz vibrante e expressiva, que tanto sobrevive nas grutas como vagueia no deserto, sobressai do quadro musical pictoricamente enriquecido por elementos do folclore religioso e xamânico da república de Tuva – um chamamento politicamente indesejável, cujo efeito é semelhante ao produzido pelo cinema culturalmente pré-soviético do georgiano Sergei Paradjanov -, superiormente filtrado, explorado e orientado pela visão estética arrojada, global e futurista de Zazou, sem prejuízo (bem pelo contrário) da colaboração assaz relevante de Vincent Kenis e de Gilles Martin, do inesgotável compêndio instrumental do Trio-O ou da natureza popular sublinhada pelas contribuições orquestrais avulsas. Uma música admirável, estilizada e transgressora, numa época em que a world music se chegou à frente no domínio das conquistas estéticas, sujeita a um ritual musical contagiante e desafiante eternizado numa gravação única e irrepetível.

 

 

17 de Março de 2012

 

 

O génio burlesco de Jerry Lewis merece ser recordado sobretudo naquele período da sua carreira onde, libertando-se das restrições impostas pelas ideias estéticas de outros autores a quem se encontrava subordinado, decidiu realizar os filmes que interpretava. Se o seu talento interpretativo evolui de forma sistemática e consistente, cujo feliz encontro com o humor irónico e caótico de Frank Tashlin lhe abriu imensas possibilidades para explorar a sua personagem visual, foi no momento em que decidiu ser autor das obras que protagonizou que Jerry Lewis demonstrou a sua arte superior numa década prodigiosa (os anos 60 do século XX) de obras-primas sucessivas: o fascínio de uma mise-en-scène simultaneamente desmedida e delicada que põe a nu toda a superficialidade de modelos, cantoras e manequins em cenário de casa de bonecas em The Ladies Man, de 1961, a espantosa riqueza cromática e a superior elaboração representativa que conduz a uma sátira impiedosa dos preconceitos conservadores da época no irrepetível The Nutty Professor, de 1963, o arrojado tour-de-force interpretativo no exuberante virtuosismo técnico de The Family Jewels, de 1965, e, acima de todos - opinião que vou consolidando à medida que o tempo passa -, essa assombrosa antologia de todos os gags possíveis e imaginários que é The Patsy, de 1964, o mais cruel e certeiro julgamento apontado ao fingimento e aos métodos utilizados pelas fábricas de sonhos, as quais, sob a proteção de apelativos mas odiosos disfarces, mais não fazem no fundo que valorizar e promover a inutilidade e a imensa pobreza da mediocridade. Essencial ainda hoje.

 

publicado por adignidadedadiferenca às 00:47 link do post
10 de Março de 2012

 

 

«Whitman é um dos poetas que mais me impressionaram em toda a minha vida. Penso que há uma tendência para confundir o Sr. Walt Whitman, o autor de Folhas de Erva, com Walt Whitman, o protagonista de Folhas de Erva, e aquele Walt Whitman dá-nos menos uma imagem e mais uma espécie de ampliação do poeta. Em Folhas de Erva, Walt Whitman escreveu uma variedade de épica cujo protagonista era Walt Whitman – não o Whitman que escrevia, mas o homem que ele gostaria de ter sido. É claro que não digo isto em desfavor de Whitman, pois a sua obra não deve ser lida como constituindo as confissões de um homem do século XIX, mas, antes, como uma épica sobre uma figura imaginária, uma figura utópica que é, em certa medida, uma ampliação e uma projeção do escritor, bem como do leitor.

 

 

Está lembrado que em Folhas de Erva o autor funde-se várias vezes com o leitor e, é claro, isto expressa a sua teoria da democracia, a ideia de que um só e único protagonista pode representar toda uma época. A importância de Whitman nunca é destacada em demasia. Mesmo se tivermos em conta os versículos da Bíblia ou de Blake, podemos afirmar que Whitman foi o inventor do verso livre. Ele pode ser visto de duas maneiras: há o seu lado cívico – o facto de que ficamos cientes da existência de multidões, de grandes cidades e da América -, e há também um elemento íntimo, embora não possamos ter a certeza sobre se ele é genuíno ou não. A personagem que Whitman criou é uma das mais cativantes e memoráveis de toda a literatura. É uma personagem como Dom Quixote ou Hamlet, mas não é menos complexa do que eles, e possivelmente é mais cativante do que qualquer deles.»

Harold Bloom, O Cânone Ocidental, tradução: Manuel Frias Martins

 

04 de Março de 2012

 

 

Lou Reed fundou em meados dos anos sessenta do século passado, com John Cale, a mítica banda de rock alternativo The Velvet Underground, cuja matriz musical – assente numa estrutura sonora simultaneamente lírica e primitiva, insistentemente negra, crua, suja, rugosa e densa, propositadamente contra corrente, que se alimentava de inesperados sobressaltos melódicos, experimentalismo e eletricidade pura, diálogos instrumentais em queda livre, acelerações e desacelerações rítmicas – influenciou sucessivas gerações de músicos que nunca esconderam o seu legado musical. Terminada a magnífica experiência velvetiana, Reed iniciou uma irregular mas significativa carreira a solo, contribuindo para o seu cânone musical o glam rock de Transformer (1972), que guarda no seu seio o hiperclássico Walk on the Wild Side; o depressivo Berlin (1973), que um excessivo protagonismo orquestral não conseguiu, ainda assim, apagar a explosão interior de raiva e ódio, nem a sublime depuração sonora da grande maioria das canções; o canto falado, os textos magníficos e a eletricidade brutal do notável New York (1989), essencial retrato, cru e pessimista, dos anos da administração Reagan; Songs for Drella (1990), o assombroso requiem sonoro em memória de Andy Warhol elaborado a meias com John Cale, o irmão desavindo; Magic and Loss (1992), glacial e comovente partilha da dor e genial demonstração de maturidade estética na suprema atenção que é dada ao mínimo detalhe sonoro; e, por último, a verdadeira obra-prima que é The Raven (2003), baseado na obra de Edgar Allan Poe, resumo essencial da visão estética tão rudimentar quanto erudita de um dos mais notáveis e elementares escritores de canções de que há memória.

 

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