a dignidade da diferença
25 de Fevereiro de 2012

 

 

Eis um exemplo magnífico, retirado da prodigiosa caracterização da sociedade francesa - temporalmente situada na viragem do século XIX para o século XX - ou da veemente demonstração da impossível conciliação entre o individuo e a sociedade que o rodeia, que formam, no domínio estético e literário, o hiperclássico Em Busca do Tempo Perdido, de que, para Proust, a realidade (sinuosa, na sua perspetiva) permanece esquecida no nosso inconsciente e só se recupera quando a memória a invade num ou mais gestos involuntários: «E era evidente que todos esses diferentes planos segundo os quais o Tempo, desde que há pouco o recapturara nesta festa, arrumava a minha vida, fazendo-me pensar que, num livro que quisesse contar uma vida, seria preciso utilizar, ao contrário da psicologia plana habitualmente utilizada, uma espécie de psicologia no espaço, acrescentavam uma beleza nova a essas ressurreições que a minha memória ia operando enquanto refletia a sós na biblioteca, visto que a minha memória, ao introduzir o passado no presente sem o modificar, tal qual ela era no momento em que era presente, suprime precisamente essa grande dimensão do Tempo segundo a qual a vida se realiza.»

Marcel Proust, O Tempo Reencontrado, traduzido por Pedro Tamen

19 de Fevereiro de 2012

  

 

Existem, na verdade, razões apresentadas pelos entendidos em etimologia e em fonética que aparentemente podem ser aproveitadas pelas duas partes do conflito linguístico. Analisados no seu conjunto, os argumentos são manifestamente insuficientes para se tomar a defesa exclusiva de uma das causas, i.e., parece-me que existem boas razões para tomar partido por uma delas, mas reconheço que o contrário também colhe - não estou convencido do perigo de fechamento vocálico, mas, por outro lado, parece-me evidente haver uma contradição nas normas da hifenização. Contudo, já me parece difícil, em princípio, defender a suposta inconstitucionalidade do Acordo Ortográfico (AO), na medida em que não é a língua que muda, não é alterado o significado das palavras. Sou moderadamente contra o AO porque entendo que a nossa língua deve evoluir por si e não ser imposta por decreto e também porque, em bom rigor, ainda não estou convencido das vantagens trazidas pela aproximação dos idiomas (não irá, por exemplo, a supressão facultativa - ou, dito de outra forma, a dupla grafia - contra aquele princípio?). Mas não me choca um AO que procura aproximar os países que falam a mesma língua e irritam-me profundamente aqueles que afirmam que o AO põe em causa uma língua que é nossa e, como tal, fragiliza a nossa identidade, pois a língua também é propriedade dos outros povos, também os identifica. Razões profissionais obrigam-me a escrever de acordo com as normas do novo AO. Por conseguinte, pelos motivos apresentados e uma vez que não faz qualquer sentido utilizar duas formas de escrita consoante estou ou não no exercício da minha profissão, vou passar a escrever em função das novas regras. Trata-se, como vimos, de uma adesão mas não de uma defesa do novo AO.

publicado por adignidadedadiferenca às 14:12 link do post
18 de Fevereiro de 2012

 

 

Nascido em Paris, no ano de 1883, Edgard Varèse, compositor e maestro francês naturalizado americano em 1926 - onde viria a falecer em Nova Iorque no ano de 1965 -, fundou (e dirigiu) a New Symphony Orchestra (1919), a Liga Internacional de Compositores (1921) e a Associação Pan-Americana de Compositores (1927), com a finalidade de se dedicar à música moderna. Varèse foi um dos mais criativos e originais compositores do século XX, cuja obra sofreu uma rutura estética assinalável com a sua chegada ao continente americano, nela se destacando a importância vital do timbre, da abstração e do contraste da massa sonora. Criador e experimentador de sonoridades eletroacústicas, esteticamente vizinhas do futurismo, Varèse, fruto do seu trabalho insistente e da sua imaginação prodigiosa, trouxe uma nova visão estética para a música contemporânea, seguindo intencionalmente uma direção contrária à corrente musical dominante na época, na qual os pilares assentam numa exploração de materiais sonoros idóneos à conquista de novos sons, ou na aplicação de inovadoras e estranhas estruturas musicais, ou, ainda, na procura de diferentes significados para uma conceção original do tempo e do espaço, elementos que evidenciam uma extraordinária diversidade e versatilidade musical, cujo arrojo estético é capaz de o classificar e consolidar entre os nomes maiores da corrente vanguardista.

 

12 de Fevereiro de 2012

 

 

O Património Genético Português é uma obra muito interessante, nada inacessível, sobre a origem dos portugueses, investigando a sua história genética. Uma escrita elegante serve de suporte ao estudo do nosso património genético, cujas conclusões são o espelho natural das paixões e do conhecimento obtidos e desenvolvidos pelas autoras de tão singular trabalho: Luísa Pereira e Filipa M. Ribeiro. No fundo, uma preciosa ajuda para compreender as características, a evolução e a diversidade dos portugueses através da sua história, da sua memória e das suas relações, referências, caminhos e desvios. Um património genético comum que merece ser conhecido e para cuja divulgação contribui o assinalável esforço desenvolvido por esta obra meritória assente num elevado grau de rigor científico. Como se afirma no posfácio deste livro «É, contudo, importante realçar que o verdadeiro poder informativo do estudo das linhagens maternas e paternas se centra na inferência das migrações da espécie humana no seu conjunto; em saber que somos uma espécie recente, nascida há cerca de 150 000-200 000 anos; em conhecer o nosso berço no Leste de África; em seguir migrações ao longo do mundo e ao longo do tempo».

09 de Fevereiro de 2012

 

Completamente esquecidos nos dias de hoje estão os Long Fin Killie, uma das bandas mais originais, inventivas e fascinantes da produtiva década de noventa do século XX. Música genuinamente nova para a época, provocante, misteriosa e agreste, alimentava-se das assombrações vocais de Tim Buckley e, após breves momentos de rarefacção sonora, explodia em espasmos vulcânicos de heavy-metal, sobretudo nos magníficos Houdini e Valentino, expoentes de uma atitude de risco estético de certa forma associado ao conceito de música alternativa. Fica uma recordação do primeiro, com o vídeoclip do vibrante Hollywood Gem.

 

 

07 de Fevereiro de 2012

 

Ou temos Estado-providência ou o Estado mínimo. Ou se vive do crédito para financiar os direitos adquiridos ou falta a assistência social e ficamos entregues ao sabor dos ventos e marés da iniciativa privada. Ou nos acomodamos ao Estado paternalista ou somos pisados pela liberalização dos mercados, esquecendo, quem nos governa, levianamente, a estrutura do tecido produtivo existente privatizando tudo sem qualquer critério. Uns, parasitas, valem-se do eterno recurso ao crédito para financiar a economia, alojar os amigos e, vá lá, melhorar as condições de vida da população, mas esquecendo-se que o filão um dia acaba; os outros, loucos, alimentam-se de uma crença irracional nas supostas virtudes do neoliberalismo económico como elemento vital para o bem-estar social (não nos poupando, sequer, à triste e surreal figura do nosso ministro das finanças a pedir aos portugueses um aumento da poupança depois do governo lhes esvaziar os bolsos com mais e mais impostos, com mais e mais sacrifícios). Esquecemos o despesismo incontrolado e a falência técnica do Estado Social, ignoramos o pesadelo da ganância do capitalismo selvagem que aumenta pornograficamente e cada vez mais o fosso entre os mais ricos e os mais pobres. Neste mundo é assim. Não nos dão qualquer hipótese: ou oito ou oitenta. Ninguém aprende com os erros do passado. Será assim tão difícil encontrar um ponto de equilíbrio que junte num só conceito as virtudes dos dois modelos económico-sociais eliminando a maior parte dos seus defeitos, i.e., não restringir para além do razoável a livre iniciativa privada e possibilitar uma repartição da riqueza mais justa e proporcional ao esforço de cada um?
publicado por adignidadedadiferenca às 23:49 link do post
03 de Fevereiro de 2012

 

 

«A literatura difere da vida na medida em que a vida é homogeneamente repleta de detalhes, e raramente nos chama a atenção para eles, enquanto a literatura nos ensina a reparar – a reparar na maneira como a minha mãe, digamos, limpa os lábios antes de me beijar; no som de berbequim de um táxi londrino, quando o seu motor a diesel entra flacidamente em ponto morto; na semelhança das linhas brancas nos casacos de cabedal velho com as estrias de gordura em bocados de carne; na maneira como a neve recente “range” debaixo dos pés; na maneira como os braços de um bebé são tão gordos que parecem atados com cordéis (ah, os outros exemplos são meus, mas o último é de Tolstoi!). Esta educação é dialéctica. A literatura faz de nós melhores observadores da vida; e permite-nos exercitar o dom na própria vida; que por sua vez nos torna mais atentos ao detalhe na literatura; que por sua vez nos torna mais atentos ao detalhe na vida. E assim sucessivamente. Basta dar aulas de Literatura para perceber que muitos jovens leitores são fracos observadores. Os meus próprios livros, caprichosamente anotados, há vinte anos atrás, nos meus tempos de estudante, mostram-me que eu sublinhava, como dignos de aprovação, detalhes e imagens e metáforas que agora me parecem banais, enquanto ignorava serenamente coisas que agora me parecem maravilhosas. Vamos crescendo como leitores, e leitores de vinte anos são praticamente virgens. Ainda não leram literatura suficiente para serem ensinados por ela a lê-la melhor.»

James Wood, a mecânica da ficção, tradução: Rogério Casanova

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