a dignidade da diferença
08 de Dezembro de 2011

 

Ainda a propósito da homenagem, levada a cabo pela Cinemateca Portuguesa nos meses de Dezembro e Janeiro, a Nicholas Ray, por ter ocorrido o centenário do seu nascimento, pareceu-nos uma óptima ideia trazer à colação este magnífico texto de João Bénard da Costa, retirado do catálogo sobre o genial cineasta publicado pela própria Cinemateca - quando organizou o primeiro ciclo sobre a obra daquele -, onde é explicada, se preciso fosse, à luz do pensamento godardiano, a absoluta modernidade do cinema de Nick Ray. Melhor e mais bela explicação não conheço. Uma das razões que ajuda a compreender a necessidade de continuar a existir críticos (e crítica), seja do que for, desde que, obviamente, não se limitem a olhar para o seu umbigo. Como se percebe neste texto, para o qual contribuem duas funções vitais: a didática e a transmissão da paixão pelo cinema (e o cinema de Ray é daqueles que mais se proporciona para criar paixões excessivas nos seus espectadores). Fiquem então com a prosa:

 

 

«Muitas vezes citei Godard, nessa tão bela crítica que escreveu “au-delà des étoiles” – porventura o seu mais belo texto. Encontrarão na antologia a citação integral e no artigo de Victor Erice também. Mas, numa e noutra, falta uma nota de pé de página capital (de Godard, obviamente). Era quando dizia, no início do texto, que já “havia o teatro (Griffith), a poesia (Murnau), a pintura (Rossellini), a dança (Eisenstein), a música (Renoir). Agora há também o cinema. E o cinema é Nicholas Ray”. E remetia para uma nota em que afirmava: “Esta classificação pode parecer arbitrária e sobretudo paradoxal. Não é nem uma coisa nem outra. É verdade que Griffith era inimigo jurado do teatro, mas do teatro do seu tempo. A estética de The Birth of a Nation ou One Exciting Night é a mesma da do Richard III ou do As You Like It. Se Griffith inventou o cinema, inventou-o com as mesmas ideias com que Shakespeare inventou o teatro. Inventou o “suspense” com as mesmas ideias com que Corneille inventou a “suspensão”. Do mesmo modo, dizer que Renoir é a música ou Rossellini é a pintura, quando se sabe que o primeiro adora quadros e o segundo odeia telas, não é gosto do paradoxo. É simplesmente reconhecer que o autor de The River se aproxima de Mozart e o de Europa 51 de Velazquez. Um procura pintar estados de alma, outro caracteres, se é legítimo simplificar tão grosseiramente.

 

 

Trata-se, pois, como se vê, de definir cineastas pelo que há de mais profundo neles, pela qualidade da sua invenção. Em Renoir, por exemplo, o número três corresponde a um “tempo” musical, enquanto que em Eisenstein corresponde a uma obsessão espacial. Eisenstein é a dança porque, no mais profundo dos seres e das coisas, procura, como a dança, a imobilidade no movimento.” Se, nessa nota, Godard explicou, quase didaticamente, as fórmulas aparentemente arbitrárias, a crítica a Bitter Victory é feita para explicar porque é que o cinema é Nicholas Ray. Explica-o através do “gouffre” que separa este filme de todo o cinema anterior, ainda redutível a outras artes. Victor Erice, no artigo que adiante se publica, fala admiravelmente dessa acepção e de como Godard podia ser dos raros a perceber a dimensão do “abismo”, do “gouffre”, que separava Bitter Victory de todo o cinema anterior. Este filme já é outra coisa, como só o cinema posterior ajudou a perceber e particularmente o de Godard. É o filme em que a banda-imagem abre para a banda-palavra e não a cega nem a oculta. Por isso, Godard dizia que “como o sol, Bitter Victory nos faz fechar os olhos”. O que Nick tentou e não conseguiu (por intervenções alheias) no Jesse James, aconteceu em Bitter Victory. A obra de cinema total.»

 

 

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