a dignidade da diferença
31 de Março de 2011

 

 

O Público, em parceria com a ASA, publicou, na colecção Os Incontornáveis de Banda Desenhada, O Buda Azul, do suíço Cosey (Bernard Cosandey), admirável autor da série Jonathan e de Viagem a Itália, entre outras obras quase tão significativas.Com O Buda Azul, Cosey regressa ao universo contemplativo, reflexivo, silencioso, por vezes sombrio, mas não isento de cor e acção, que caracterizava grande parte da sua obra anterior. Tendo como pano de fundo a ocupação chinesa do Tibete, Cosey narra-nos a história de um jovem inglês, Gifford, recebido pelos residentes de um mosteiro tibetano, do seu encontro com Lhahl, a jovem guardiã do Buda Azul, do amor impossível, da posterior separação e da longa demanda em busca da sua amada. Uma história onde o seu autor consegue, uma vez mais, siderar-nos com a absurda riqueza cromática e o rigor formal do traço, o experimentalismo estético e uma permanente insatisfação que o faz questionar criteriosamente os parâmetros estabelecidos através de uma inesgotável gama de recursos estilísticos. Mas isso, por si só, talvez não bastasse. O que mais nos impressiona é a circunstância do sentido estético de Cosey não ser um corpo vazio, isto é, do requinte instrumental estar aqui apenas para servir uma admirável construção filosófica sobre os desígnios, o sofrimento, as aspirações, os medos e as inquietações que os desafios do mundo contemporâneo provocam. 

publicado por adignidadedadiferenca às 00:47 link do post
27 de Março de 2011

 

 

«Tomemos outro exemplo de um tema já abordado: Numa associação industrial cooperativa, será ou não justo que o talento ou a perícia dêem direito a uma remuneração superior? Do lado de quem responde negativamente, afirma-se que quem dá o melhor que pode merece o mesmo, e não deve, à luz da justiça, ser colocado numa posição de inferioridade por coisas de que não tem culpa; que as capacidades superiores encerram em si vantagens mais que suficientes, pela admiração que suscitam, a influência pessoal que exercem, e pelas fontes de satisfação que as acompanham, sem necessidade de adicionar a estas uma maior fatia dos bens do mundo; e que, pelo contrário, a sociedade está obrigada em justiça a compensar os menos favorecidos por esta imerecida desigualdade de benefícios, e não a agravá-la. No lado contrário defende-se que a sociedade recebe mais do trabalhador mais eficiente; que, sendo os seus serviços mais úteis, a sociedade lhe deve uma retribuição maior por eles; que uma maior fatia do resultado conjunto é na verdade obra sua, e não lhe reconhecer o direito a ela é uma espécie de roubo; que se ele receber apenas o mesmo que os outros, pode apenas exigir-se-lhe, em justiça, que produza o mesmo, e dedique uma menor percentagem de tempo e esforço, proporcionais à sua eficiência superior. A justiça tem neste caso duas faces, que é impossível harmonizar, e os dois contendores escolheram lados opostos; um deles olha para o que seria justo que o indivíduo recebesse, o outro para o que seria justo que a comunidade lhe concedesse.»

Stuart Mill, John, Utilitarismo, Gradiva, tradução: F. J. Azevedo Gonçalves

publicado por adignidadedadiferenca às 11:26 link do post
26 de Março de 2011

 

Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades (1971), José Mário Branco

 

 

No momento em que uma geração genericamente mal preparada para enfrentar os desafios laborais e sociais decide, no meio das ainda assim legítimas aspirações e dos inevitáveis protestos, abraçar a ligeireza e a vulgaridade dos Deolinda e de Os Homens da Luta, não há nada como revisitar os autores genuínos, isto é, aqueles que, de facto, quebraram as regras estabelecidas até então, foram inventivos, pioneiros, ousados e resistentes, deixando-nos uma fabulosa herança musical. Acima de todos estiveram, como hoje pacificamente já se reconhece, José Mário Branco, José Afonso e Sérgio Godinho. O disco que vos trago à memória é do primeiro e chama-se Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades. Em 1971, José Mário Branco inicia, com Cantigas do Maio e Os Sobreviventes, de José Afonso e Sérgio Godinho, respectivamente, uma fase superior da canção popular. Para trás ficavam as baladas monocórdicas e rudimentares, instantaneamente envelhecidas no confronto com uma música nova, onde se explora e se dá uma importância fundamental às ferramentas do som. As palavras mordazes e irónicas sobre o medo, a opressão, a guerra, a resistência, o exílio, a ditadura, envolvem-se num grafismo sonoro prodigioso que consiste numa fusão natural da música erudita com o jazz, na exploração timbríca e harmónica das guitarras eléctricas, dos baixos sinuosos, da expressividade vocal, criando uma atmosfera densa e sombria, aqui e ali metálica, que se reflecte numa construção musical riquíssima em tonalidades onde cabe um pouco de tanta coisa: as canções heróicas de Lopes Graça, o minimalismo, a tradição popular, os poemas do genial O’ Neill ou de Natália Correia, a chanson française ou o aroma tropical sul-americano. Fica como exemplo maior deste corpo iluminado a previsão do que aí vinha na lucidez extrema de «quanto a nós/nós cantores da palidez/nosso canto nunca fez/filhos sãos a uma mulher/nem sequer/passa mel nos nossos ramos/pois a abelha que cantamos/será mosca até morrer». Um disco perfeito.

 

 

24 de Março de 2011

 

 

Negociou o novo pacote de medidas restritivas sem dar cavaco a ninguém. Desconsiderou o Presidente da República, a oposição e os parceiros sociais. Para o nosso Primeiro-Ministro os outros deixaram de contar. E ainda tem a «lata» de dizer que a crise política era evitável e faltou diálogo?! Como é evidente, perdeu há muito a legitimidade política para governar. Arrogante, incompetente, desconhecedor profundo da importância fundamental da nossa Constituição, tem uma noção de serviço público abusiva e, para agravar, ainda é, segundo parece, aldrabão. Em suma, o típico patrocinador de medidas superficiais, o fura-vidas que adoptou a lei do desenrascanço como paradigma da governação. O país agradece a sua demissão. José Sócrates não deixa quaisquer saudades…

publicado por adignidadedadiferenca às 01:04 link do post
19 de Março de 2011

 

 

A propósito da exclusão, pelo Ministro da Cultura francês, de Céline da lista de autores a homenagear este ano e do despedimento de John Galliano da casa Dior, ambos motivados pelas acusações de anti-semitismo e de apelo à violência, julgamos merecedora de destaque a pertinente análise efectuada por António Pinto Ribeiro e publicada ontem no Público (suplemento Ípsilon). Se no caso do costureiro Galliano aquelas acusações serviram apenas como pretexto para o despedimento, dado que as razões efectivas estavam, segundo cremos, ligadas a um autismo e desleixo que já se reflectiam no seu trabalho, as circunstâncias que envolvem a exclusão do genial Céline justificam uma maior ponderação. A dimensão artística de uma obra de arte não deverá ser equacionada, quanto a nós, por estar associada ao seu autor uma elevada carga de violência, uma vez que a obra se legitima a si mesma porque se enquadra sempre no plano da representação e aí o que vale é a sua perfeição estética. Defenderemos sempre, por exemplo, O Triunfo da Vontade e Olympia, de Leni Riefenstahl, como prodigiosas encenações cinematográficas apesar da ideologia repulsiva que lhe está subjacente.

 

 

Mas também não podemos ser irresponsáveis e omitir que, apesar da autonomia artística, pessoa e autor são um só e que os seus actos devem ser condenados quando não se incluem na natureza representativa própria da obra ficcionada e são, pelo contrário, uma execução pura da violência. Ou, como explica António Pinto Ribeiro, «Nenhum relativismo artístico justifica qualquer violência sobre outro, homem ou animal. Para os que consideram que entre a pessoa e o autor, e mesmo entre o autor e o seu heterónimo, haverá um espaço de desresponsabilização, é oportuno afirmar que o direito de autor, de facto, não desresponsabiliza nem diferencia o autor da pessoa. A confirmá-lo estão os direitos de carácter patrimonial, do reconhecimento do direito de autor e o direito sobre a paternidade da obra. Em todas estas situações: autor e criador, artista e criador, e pseudónimo e criador, gozam do usufruto da identificação inequívoca.»

 

publicado por adignidadedadiferenca às 12:29 link do post
16 de Março de 2011

 

 

Hewitt gravou, em 1967, o seu álbum de estreia Jawbones com apenas 16 anos, terminando o ciclo musical com Winter Winds, ainda não tinha 20 anos, demonstrando na sua curta carreira todo o seu talento precoce. A caixa Winter Winds – The Complete Works: 1968-1970 traz à colação o seu portentoso legado musical. Uma espécie de jazz espiritual, transcendente, assente em micro camadas de lirismo, pontuado aqui e ali por alguma crueza, súbitos ataques de bebop e swing, com capacidade para transformar pormenores em «pormaiores» e para edificar uma modernidade estética de grande envergadura e gravidade, reflexo majestoso de uma arquitectura sonora e profundidade dramática sem precedentes. Uma obra admirável e praticamente omissa.

 

publicado por adignidadedadiferenca às 00:08 link do post
12 de Março de 2011

 

Cristina Branco acrescenta, com o novíssimo Não Há Só Tangos Em Paris, mais um dado novo ao seu original percurso musical pelos caminhos do fado-canção. Desta vez, após o excelente Kronos – onde questionava, uma vez mais, se o que cantava era ou não fado, aproveitando para expandir subtilmente os seus limites -, Cristina Branco viaja por Buenos Aires, Lisboa e Paris, ou seja, investe na matriz (ou género) musical que imediatamente associamos àquelas cidades: a sensualidade do tango, a tristeza do fado e a melancolia da chanson française; dito de outro modo, traz-nos as memórias de Gardel, Amália e Brel. Adiciona-lhe, como é seu timbre, pequenos sulcos, factores de inquietação, os quais enriquecem a sua música com novas cambiantes, injecta-lhe diferentes ângulos de visão e inventa inesperadas coordenadas, sem, contudo, se afastar demasiado de um sereno classicismo. As canções ganham assim uma formidável ambiguidade, não são maçadoramente lineares, e fornecem à sua autora (embora Cristina Branco não as assine) matéria suficiente para se manter como uma das mais excelsas cantoras teoricamente tradicionais da actualidade.

 

publicado por adignidadedadiferenca às 00:08 link do post
08 de Março de 2011

 

A Senhora está sentada

Não tem pés, pois muito andou

Já nem na memória há rastos

Do tempo que caminhou

 

A Senhora está sentada

Numa redoma de luz

E é uma nave perdida

Nenhuma rota a conduz

 

E a Senhora está sentada

Numa montanha de fel

Rios correm dos seus olhos

E dos seus lábios o mel

 

E a Senhora está sentada

Tem parado o respirar

Do seu peito saem chamas

Das que não sabem queimar

 

E a Senhora está sentada

Sobre as dores de cada um

Do seu ventre sai remédio

Que cura como nenhum

 

E a Senhora está sentada

Numa matéria sem nome

Transformada numa estátua

Que não tem sono nem fome

 

E a Senhora está sentada

Sobre as suas próprias mãos

E baloiça no vazio

No céu de todos os chãos

 

Amélia Muge, A Senhora Está Sentada, in Todos Os Dias, gravado em 1994 

publicado por adignidadedadiferenca às 11:45 link do post
05 de Março de 2011

 

Almas Perversas (Scarlet Street), estreado em 28 de Dezembro de 1945, é um remake do magnífico La Chienne, de Jean Renoir. Saiu finalmente em DVD (a boa notícia) numa cópia sofrível (não há bela sem senão). Nele se conta a história de Christopher Cross (interpretado pelo genial Edward G. Robinson), protagonista de uma vida banal na qual transporta o ónus de um casamento infeliz. Mas tudo irá mudar quando conhece Kitty (interpretada por Joan Bennett, fabulosa na densidade que transmite à personagem e na ideia de mal que lhe consegue associar), com quem irá ter uma aventura que o conduzirá ao abismo. Pintor com talento, Cross descobre que Kitty (influenciada por Johnny, o amante) se aproveita dos seus quadros e os vende como se as obras fossem da autoria dela. Porém, crédulo, acredita que o seu amor é correspondido e permite que Kitty goze os louros da fama conquistada, até que perde completamente o controlo quando o mundo desaba à sua volta ao descobrir a traição de Kitty e a paixão desta por Johnny.

 

  

 

Se Jean Renoir aproveita La Chienne para ridicularizar instituições, através de uma análise anárquica e destrutiva sobre as ideias de justiça, trabalho, família ou casamento, Fritz Lang explora assombrosamente o abismo que vai consumir Christopher Cross, abalando irreversivelmente a sua estrutura moral e a sua dignidade enquanto pessoa, e daí constrói, como acertadamente referiu João Bénard da Costa, uma avassaladora meditação moral sobre a solidão, o medo e a culpa, assinando uma das suas obras mais pessoais. Atormentado pelo diálogo Kitty-Johnny, possuído pelo ciúme e pelo desejo de vingança, Cross é atraído por uma força destrutiva que o transforma no assassino de Kitty e no responsável pelo enforcamento de Johnny (suprema perversidade e inquietante ambiguidade de Lang, ao conseguir que ninguém sinta remorsos pela execução de um inocente). Mas a dupla morte de Kitty e de Johnny não sacia o sofrimento de Chris Cross, e o filme termina com a impotente angústia do protagonista; Cross jamais conseguirá calar as vozes do par naquele diálogo que tanto o atormenta.

02 de Março de 2011

 

Eis o que Malcolm Gladwell - intelectual, jornalista do Washington Post e autor de O Que o Cão Viu (compilação de artigos escritos na revista New Yorker), Blink (onde o autor identifica diversas situações demonstrativas de que o poder intuitivo possui um valor superior ao da análise racional, laboratorial), A Chave do Sucesso (estudo das razões que determinaram alterações repentinas e inesperadas na sociedade) e Outliers (o autor defende que o sucesso e o talento não acontecem por acaso, pelo contrário, dependem de muitas horas de prática; o sucesso não é fácil) - respondeu na entrevista que deu ao semanário Expresso: «Não estou certo que os acontecimentos nesses países (Egipto e Tunísia) nos tenham mostrado uma realidade diferente. É óbvio que os activistas usaram as ferramentas das redes sociais para ajudar a organizar os protestos. Os activistas sempre usaram as ferramentas de comunicação que tinham à sua disposição para planear as actividades. Mas apesar disso, não é seguro que as redes sociais tenham sido cruciais nos protestos. Penso que os entusiastas das redes sociais têm uma clara falta de perspectiva histórica. Há milhares de anos que assistimos a protestos desta natureza. Para me convencerem do papel das redes sociais, teriam de me provar que estes acontecimentos não tinham sido possíveis sem o Facebook ou o Twitter. Na Alemanha de Leste, em 1989, os protestos abalaram a União Soviética e muito poucos tinham telefone. Isso não é suficiente para demonstrar que a tecnologia de informação existente não é o factor crucial para o sucesso de uma revolta?»

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