Diz um velho provérbio extraído do mundo exterior e visível: «só ganha o seu pão quem trabalha». É bastante estranho que este ditado não se enquadre no mundo ao qual de origem pertence; pois o mundo exterior está sujeito à lei da imperfeição e cada vez mais se repete por aí que aquele que não trabalha também ganha o seu pão, e aquele que dorme ganha-o com maior abastança do que aquele que trabalha. No mundo exterior tudo pertence ao portador que é escravo da lei da indiferença, e o espírito do anel obedece a quem tem o anel, seja ele Noureddin ou Aladdin, e quem possui os tesouros do mundo fica com eles, seja qual for o modo como os obteve. No mundo do espírito passa-se de outra maneira. Reina uma eterna ordem divina no mundo do espírito, onde não chove sobre os justos como sobre os injustos, onde o Sol não nasce para os bons como para os maus, onde ficou estabelecido que só ganha o seu pão quem trabalha, onde só encontra descanso quem experimentou a angústia, onde só salva a amada quem desce ao outro mundo, onde só recebe Isaac quem puxa a faca. Aquele que não quiser trabalhar não ganha o seu pão, antes é enganado, como os deuses enganaram Orfeu com uma figura etérea no lugar da amada; enganaram-no porque era cobarde, não era corajoso, enganaram-no porque era citarista, não era homem. No mundo do espírito de nada serve ter Abraão como pai ou ter dezassete gerações de antepassados; a quem não quiser trabalhar, assenta bem o que está escrito sobre as virgens de Israel – dá à luz o vento, mas aquele que quiser trabalhar dá à luz o próprio pai.
Kierkegaard, Søren, Frygt og Bœven (Temor e Tremor), Relógio D’ Água, 2009, Tradução de Elisabete M. de Sousa.