Não contesto que o Estado Social é, na sua essência, uma coisa bonita. Um imperativo categórico, sem dúvida. Mas a verdade é que o dinheiro não dá para tudo e, se a orientação se mantiver, só nos resta bater no fundo. Como muito bem refere Henrique Monteiro, director do semanário Expresso, no seu editorial de sábado:
«As medidas de austeridade anunciadas são melhor do que nada. Mas por que razão todas elas colocam o esforço do lado dos cidadãos sem beliscar a estrutura das “benesses” e a dimensão do Estado? (…) Infelizmente a dimensão do Estado foi deixada em paz. Acaso vimos cortes na caterva de institutos públicos que mais não fazem do que duplicar serviços do Estado? Nos governos civis que ninguém sabe para que servem? Nos inúmeros municípios e autarquias que, por questões de dimensão, já não têm razões de existir? No número infindável de assessores? No recurso a gabinetes de advogados? Nada disso se viu, porque à sombra destes organismos vivem inúmeros boys cuja maior utilidade é rodarem ao sabor dos poderes sucessivos, de que são o mais fiel suporte.»
É aqui que reside o principal problema. E estes gastos não vão diminuir com a ascensão do PSD ao poder. Por uma razão muito simples: quando o PSD governou, a praga dos boys continuou. Como de costume, diz-se uma coisa e faz-se outra. Nesta matéria, sejam PS ou PSD, os nossos governantes sempre foram autistas.
«Os Anéis de Saturno começa como o diário de uma viagem a pé ao longo da costa de East Anglia. De lowestoft a Southwold e Bungay, a história do próprio Sebald torna-se o fio condutor de evocações de pessoas e culturas do passado e do presente: Chateaubriand, Thomas Browne, Swinburne e Conrad, frotas de pesca, caveiras e bichos da seda. Como todos os outros títulos de Sebald, este é um livro impossível de classificar, sendo ao mesmo tempo diário de viagem e ficção, autobiografia e enciclopédia. W. G. Sebald explora aqui o universo que o homem pensou e construiu, desde a noite dos tempos, para se dedicar hoje a destruí-lo».
Texto "arrancado" da contracapa do livro.
Para quê mais palavras? As que ali estão são exactas e definem com rigor o universo introspectivo, solenemente reflexivo, e, por vezes, denso, do autor. Um objecto difícil mas longe de ser inacessível, onde o autor jamais perde o sentido de orientação. Dito de outra forma: um livro extraordinário escrito numa linguagem ecléctica que procura um discurso autobiográfico e com claros cambiantes evocativos. Sebald olha para o mundo de forma descrente, numa visão crepuscular feita sobretudo de recordações. Uma escrita rara e admirável.
Mas, assim de repente, parece-me que dificilmente não será o disco português do ano. E nem precisaram de arriscar muito. Bastou que fossem iguais a si próprios, pois o vendaval estético dos Pop Dell'Arte ainda está a anos-luz da concorrência nacional. Uma espécie de música pop-dirty-dance-luso-qualquer coisa p'ra lá da fronteira.
E, volto a insistir, não foi sequer necessário carregar demasiado na tecla da inovação para ser, até ver, uma obra belíssima. Um futuro clássico. Avanti Pop Dell'Arte!
Eis finalmente disponível, em edição portuguesa, o genial Johnny Guitar (1954) de Nicholas Ray. O filme de todos os excessos e de todas as paixões, que fala como poucos sobre o desespero e a solidão, é, também, um grande filme político. A liberdade, o direito à propriedade privada, as posições de domínio e a nossa acentuada tendência para o autoritarismo e o egoísmo são, indiscutivelmente, temas centrais desta obra magnífica.
Cores carregadas, diálogos aparentemente banais – mas quem os ouviu não esquece –, o par Guitar/Vienna e interpretações (quase sempre) inesquecíveis, são os alicerces deste extraordinário filme barroco e crepuscular, filme de recordações e de hiatos de tempo, de elipses, de ódios exacerbados e de recalcamentos, e, sobretudo, filme de (e sobre o) silêncio.
Um clássico a não perder, obviamente.
Jacksonville, do magnífico "(Come on feel the) Illinoise (2005), de Sufjan Stevens. Trata-se de uma recordação sem qualquer motivo ou razão aparente. Serve apenas para dar um pouco de musicalidade a este blog e porque a música, afinal, é a principal razão da sua existência.
E, já agora, pode ser que inicie alguém na escuta da óptima carreira do músico norte-americano. Gravações merecedoras de louvor não faltam por aí: Illinoise (2005), Songs for Christmas (2006) e, pelo menos, The BQE (2009).
Sufjan Stevens: "Jacksonville"
Um texto de uma lucidez absolutamente notável. Para ler e pensar.
«Se há facto estranho e inexplicável é que uma criatura de inteligência e sensibilidade se mantenha sempre sentado sobre a mesma opinião, sempre coerente consigo próprio. A contínua transformação de tudo dá-se também no nosso corpo, e dá-se no nosso cérebro consequentemente. Como então, senão por doença, cair e reincidir na anormalidade de querer pensar hoje a mesma coisa que se pensou ontem, quando não só o cérebro de hoje já não é o de ontem, mas nem sequer o dia de hoje é o de ontem? Ser coerente é uma doença, um atavismo, talvez; data de antepassados animais em cujo estádio de evolução tal desgraça seria natural. A coerência, a convicção, a certeza são além disso, demonstrações evidentes — quantas vezes escusadas — de falta de educação. É uma falta de cortesia com os outros ser sempre o mesmo à vista deles; é maçá-los, apoquentá-los com a nossa falta de variedade.»
Fernando Pessoa em “Ideias Políticas”.
Roubado descaradamente d’aqui
Gustavo Dudamel dirige a Jovem Orquestra Simón Bolívar, da Venezuela, numa interpretação exuberante de "A Sagração da Primavera" do genial compositor russo Igor Stravinsky. O título da obra que acaba de sair chama-se "Rite" e a gravação é acompanhada por uma versão de "La Noche de los Mayas" de Silvestre Revueltas. Para escutar atentamente.
Um clássico absoluto contra a sonolência e a ditadura futebolística deste verão. Um momento impagável e inesquecível dos Monty Phyton.
Dead Combo Vol.1 (2004)
«Algures no princípio do séc. XXI, juntaram-se à esquina, na cidade de Lisboa dois vadios, um “cavalo de fogo” magro de 66, solitário de cartão e face vincada, o outro alto de 70, vindo do meio escuro do jazz, signo “cão”, ambos juraram vingar os mortos e fazer ressuscitar os vivos. Marcados pela BD, trazem a saudade esbanjada nos bolsos e a alma muda perdida em filmes negros. Tocam Lisboa, a cidade do campo, das chaminés e das cúpulas brancas, cenários de um passado perdido, o fado, o western vadio, tudo junto num vudu de emoções, o Tejo, os amantes desencontrados, anjos abandonados nas encruzilhadas do destino, flores com cores trocadas, santos, câmaras ardentes, guitarras despidas, cuspidas e deitadas à rua, contrabaixo em fogo, cartolas, galinhas à solta e coisas que rolam na rua. Ali encostados à parede no meio desta confusão, os dois trincam pecados de maçã, enquanto olham para Ti…»
Nada mais exacto. Este pequeno texto, que acompanha a edição do disco de estreia dos Dead Combo, faz a radiografia perfeita da atmosfera sonora que se respira nesta obra notável. Música individualizada e personalizada, vincadamente portuguesa, mas que aceita todas as contaminações exteriores que contribuam para o seu enriquecimento.
O grupo seguiu, naturalmente, o seu caminho, tornando a sua música um pouco mais encorpada, acolhendo, aqui e ali, outros elementos que moldaram o seu trilho sonoro. Mas o que este disco trouxe de essencial ficou: Morricone semi-destilado, melancolia e fado em tom pastel, rosas queimadas em zinco e uma guitarra que se cansou de morder o pó da estrada.
Um pequeno mas notável gesto de amor livre e solitário.
Viúva Negra
De vez em quando lembro-me dela. Uma voz e uma atitude magníficas e personalizadas, mas sempre tão pouco disponível... Quando é que sairá novo disco dela?
Body's in trouble