Com dedicatória especial a todos aqueles que gostam de se meter na vida dos outros, comentá-la, criticar o que fazem, o que dizem, com quem andam ou deixam de andar. Até parece que a sua é uma vida cheia de verdades e não têm já problemas suficientes com que se preocupar. Eis a sinopse do sublime conto de Anton Tchékhov que aqui quero recordar: Aniókhin foi eleito juiz de paz honorário e conhece Luganóvitch, vice-presidente do tribunal da comarca. Este, um dia, convida-o para almoçar em sua casa e, apesar da hesitação inicial, o convite foi aceite. Foi aí que Aniókhin teve oportunidade de conhecer Anna Alekséevna, mulher de Luganóvitch. No almoço tudo foi claro para Aniókhin; viu uma mulher jovem, bela, bondosa, uma intelectual, encantadora, uma mulher como nunca encontrara antes. Também reparou que marido e mulher faziam tudo para ele comer e beber; e por alguns pormenores, como preparavam o café juntos, por exemplo, ou por se compreenderem à primeira palavra, concluiu que viviam em harmonia e sem problemas. Os Luganóvitch trataram de fazer amizade com Aniókhin; se ele tardava muito em ir à cidade, para eles já tinha adoecido, já lhe acontecera alguma desgraça. Aniókhin pensava nela e tentava compreender por que razão aquela mulher tinha casado com um homem nada interessante e que já passava dos quarenta. De todas as vezes que ia à cidade, falavam muito, calavam-se muito, mas não confessavam o seu amor. Aniókhin interrogava-se sobre aonde poderia levar aquele amor se não tivessem forças para lhe resistir e parecia-lhe intolerável que aquele amor sereno e triste pudesse quebrar a corrente feliz da vida do marido, dos seus filhos e de toda a casa onde gostavam tanto dele. Também ela raciocinava da mesma maneira. Pensava no marido, nos filhos e na sua mãe, que gostava do genro como de um filho. Passaram os anos e, um dia, chegou a hora da despedida, porque Luganóvitch fora nomeado presidente do tribunal numa das províncias ocidentais. Foi decidido que Anna Alekséevna iria para a Crimeia e um pouco mais tarde Luganóvitch partiria com os filhos. Acompanharam-na à estação dos comboios e, quando ela já se despedira do marido e dos filhos, Aniókhin foi-se despedir dela. Do que aconteceu a seguir, passo a citar:

«Quando, no compartimento, os nossos olhares se cruzaram, a força de alma abandonou-nos aos dois, abraceia-a, ela apertou o rosto contra o meu peito, as lágrimas corriam-lhe dos olhos; beijando-a no rosto, nos ombros, nas mãos molhadas de lágrimas – oh, que infelizes nós estávamos! – declarei-lhe o meu amor e compreendi, com uma dor pungente no coração, como era inútil, mesquinho e enganador tudo o que nos impedia de amar. Compreendi que, ao amarmos, temos de reflectir sobre o amor numa base mais elevada, mais importante do que a felicidade ou a infelicidade, o pecado ou a virtude no seu sentido corrente, ou então não vale a pena, sequer, reflectir sobre ele. Beijei-a pela última vez, apertei-lhe a mão entre as minhas, e separámo-nos para sempre. O comboio já começava a andar. Sentei-me no compartimento vizinho – estava vazio – e, até à paragem seguinte, deixei-me ficar ali, a chorar. Depois fui para a minha Sófiino a pé...»
Sobre o Amor, in Contos de Tchékov, 3.º volume, Relógio D’Água. Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra.