Jeff Buckley, Grace (1994)
Sou da opinião de que o culto gerado à volta de Jeff Buckley – principalmente, após a sua morte – terá sido, porventura, algo exagerado, face à razoável decepção que tive ao escutar a sua segunda gravação; o duplo Sketches For My Sweetheart The Drunk. Composto por um primeiro disco que nunca teve uma versão definitiva e que pouco mais não é do que uma actualização da matriz musical que fez história nos Led Zeppelin, acompanhada, aqui e ali, por um instinto pop razoavelmente apurado, por alguns trapos de folk sensível e por uma voz que, por vezes, soube voar bem alto. O segundo disco deixou uma impressão demasiado vincada a manta de retalhos, embora, num par (de esboços) de canções, por força do talento musical indiscutível de Buckley, francamente sedutora. Contudo, também é verdade que o filho do lendário e genial Tim Buckley entrou directamente para a história da música, com uma das mais impressionantes e emocionalmente arrepiantes estreias musicais de que há memória. Grace não é uma obra de ruptura com o passado musical e até convive bem com as marcas da época, mas deixa um traço absolutamente ímpar que é a impressionante naturalidade com que o autor domina, superiormente, os mais diversos géneros musicais, atravessando-os e trespassando-os literalmente, numa bela e singular demonstração de ecletismo musical, poético e estético. Buckley assina, nesta gravação, um punhado de grandes canções clássicas, oferecendo-nos uma gama de recursos estílisticos soberba e variada que vai do espectro sonoro de Captain Beefheart até à sublime transfiguração romântica do sofrível Lilac Wine. Todas as canções possuem uma embriaguez sonora que é o reflexo de um estado de alma que caminha sempre no fio da navalha. Ternura e revolta tantas vezes de mãos dadas, como se pode escutar nestes espantosos espasmos sonoros que se afundam em pedaços de heavy-metal electrocutado e se elevam em sumptuosos e celestiais arranjos de cordas, superiormente conduzidos por uma assombrosa voz de anjo negro que voa, magnifica e livremente, sobre montanhas de desespero e abismos de paixão. Claro que todos nós temos duas ou três canções preferidas num álbum como este e eu não escapo à regra. Sinto-me impotente perante a levitação vocal que acontece no final da magnífica Grace (nunca a voz de Jeff foi capaz de voar tão alto), não esqueço a frágil e emocional interpretação à beira do abismo de Corpus Christi Carol do compositor erudito Benjamin Britten, nem a inesquecível e solitária versão de Hallelujah do Leonard Cohen ou a espantosa e visceral Eternal Life, radiografia perfeita da emoção levada ao extremo da dor, da ira e da paixão. Se todos os restos musicais de Jeff Buckley foram explorados até à náusea, sem que daí resultasse alguma mais-valia musical, existe mais uma gravação, porém, que vai servir para alimentar, merecidamente, o mito: o magnífico Live Al’Olympia, celebração exuberante do rock’n’roll quando já todos o julgávamos morto e enterrado. E, já agora, o meu desejo é que o culto prestado a Jeff Buckley se estenda ao seu pai, Tim, autor de uma prodigiosa e semi-esquecida obra musical, nomeadamente os memoráveis e mui excelentes Goodbye and Hello, Happy Sad, Blue Afternoon, Lorca, o «live» Dream Letter e, acima de todos, Starsailor.