Um carácter confuso e imprevisível, fruto de uma vida de deliquência, drogas e prostituição, é matéria mais do que suficiente para alimentar as canções feitas de histórias em busca da redenção e que nos oferecem um retrato inquietante de almas inadaptadas e, quase sempre, em risco de perdição – por vezes, autênticos fantasmas que por lá habitam – e que são, no fundo, o reflexo perturbado e labiríntico em que se transformou a mente mística e cristã de Judee Sill.
Como se isso já não bastasse, a sua prodigiosa criatividade ainda se expõe em brilhantes canções retiradas do cancioneiro popular americano: folk, country, gospel e blues; enriquecendo-as orquestralmente com os mais espantosos, complexos e requintados bordados sonoros que a música pop registou até aos dias de hoje.
Melodias profundas e desenhos polifónicos pouco usuais, acrescidos por uma noção perfeita do ritmo e do espaço (ou, até, dos seus limites) e aliados a um conceito definitivamente absorvido da arquitectura sonora enquanto essência fundamental na estrutura musical de uma canção, brilham intensamente e de forma inesquecível nos dois primeiros álbuns da compositora que viria a falecer em 1979, vítima de overdose, com 35 anos.
Se o álbum de estreia já era muito mais do que o esboço do muito que Judee Sill tinha para mostrar é, contudo, em Heart Food (um dos discos fundamentais do século XX) que a sua criação (ou visão) musical vai atingir a perfeição absoluta. The Kiss, The Phoenix ou The Donor são exemplos maiores de um génio transtornado mas de uma imensidão musical sem limites. Não admira, por isso, que um dos mais brilhantes artesãos da música pop, Andy Partridge (dos seminais XTC), seja seu admirador confesso.
Fica, entre outros, o exemplo de The Kiss. A versão é óptima mas, acreditem, a interpretação no disco é incomparavelmente superior.
The Kiss
The Phoenix