a dignidade da diferença
01 de Fevereiro de 2009

Para o que seria a estréia tropicalista, a apresentação de “Alegria, alegria” no festival da TV Record, estávamos todos certos, Gil, Guilherme e eu, de que um grupo de iê-iê-iê (rock) deveria ser contratado como acompanhante. Antes que eu pudesse comunicar minha intenção de convidar o RC7 a Guilherme, ele surgiu com uma solução irresistível. A casa noturna paulista O Beco, de Abelardo Figueiredo, um velho conhecido de Guilherme, tinha sob contrato um grupo de rock argentino chamado Beat Boys, composto de jovens músicos portenhos muito talentosos e conhecedores da obra dos Beatles e do que mais houvesse. Guilherme, que os ouvira casualmente numa ida ao Beco, me sugeriu que fosse conferir. Ao vê-los e ouvi-los, soube que aquilo era a coisa certa. O aspecto do grupo de rapazes de cabelos muito longos portando guitarras maciças e coloridas representava de modo gritante tudo o que os nacionalistas da MPB mais odiavam e temiam.

 

Alegria, alegria

 

Há um critério de composição em “Alegria, alegria” que, embora tenha sido adotado por mim sem cuidado e sem seriedade, diz muito sobre as intenções e as possibilidades do momento tropicalista. Em flagrante e intencional contraste com o procedimento da bossa nova, que consistia em criar peças redondas em que as vozes internas dos acordes alterados se movessem com natural fluência, aqui opta-se pela justaposição de acordes perfeitos maiores em relações insólitas. Isso tem muito a ver com o modo como ouvíamos os Beatles – de que não éramos (eu ainda menos do que Gil) grandes conhecedores. A lição que, desde o início, Gil quisera aprender dos Beatles era a de transformar alquimicamente lixo comercial em criação inspirada e livre, reforçando assim a autonomia dos criadores – e dos consumidores. (...) Nós partiríamos dos elementos de que dispúnhamos, não da tentativa de soar como os quatro ingleses. No meu caso – tanto em “Alegria, alegria” quanto na posterior e mais rebuscada “Clara” – há a presença (assumidamente consciente à época) do judaísmo pernambucano de Franklin Dario. Os Beat Boys se sentiram à vontade com esse material algo original mas talvez pouco consistente para beatlemaníacos. (...) As canções tropicalistas não se parecem com as canções dos Beatles – não na mesma medida em que essas outras são paródias delas.

Suponho que foi o maestro Júlio Medaglia quem promoveu a aproximação entre nós e o grupo de músicos eruditos contemporâneos de São Paulo a que ele pertencia. Medaglia pôs Gil em contato com Rogério Duprat que, por sua vez, o pôs em contato com os Mutantes.

A canção que Gil escolhera para apresentar o ainda não nomeado tropicalismo ao público do festival era uma adaptação de temas básicos de cantos de capoeira ao método harmónico de cortes bruscos (...) como sustentação da narrativa fortemente visual, na letra, de um crime passional ocorrido entre gente humilde num domingo em Salvador. Enquanto a minha canção se referia a estrelas de cinema (Brigitte Bardot, Claudia Cardinale), o “Domingo no parque” de Gil fora concebido quase como um filme. Com uma capacidade musical imensamente maior do que a minha, Gil entrou num diálogo fascinante com o músico erudito de vanguarda Rogério Duprat e com o grupo de rock Mutantes, criando um arranjo híbrido de trio de rock, percussão baiana (berimbau) e grande orquestra.

Os Mutantes eram três adolescentes da Pompéia, bairro de São Paulo (...) Quando Duprat os apresentou a Gil, este comentou comigo assustado: “São meninos ainda, e tocam maravilhosamente bem, sabem de tudo, parece mentira”.

 

Eles pareciam três anjos. Sabiam tudo sobre o rock renovado pelos ingleses nos anos 60, tinham a cara da vanguarda pop da década. Diferentemente dos roqueiros dos anos 50, eles eram refinados, tinham um estilo de comportamente cheio de nuances e delicadeza. Sérgio, com apenas dezasseis anos, exibia uma técnica guitarrística de primeira linha, em nível internacional. Rita e Arnaldo eram namorados desde a infância e tudo em volta deles tinha um sabor a um tempo anárquico e recatado. Ela era extramente bonita e sua porção americana muito evidente (era filha de um emigrante americano com uma descendente de italianos) lhe dava um ar em que se misturavam liberdade e puritanismo. (...) Lembro apenas que, por causa de Arnaldo, tínhamos de evitar palavrões em presença de Rita. (...) Era, no entanto, prazeroso, além de espantoso, tê-los por perto. E o resultado do trabalho  - e do trabalho subsequente deles como grupo e como artistas individuais (Rita tornou-se e é até hoje a maior estrela feminina do rock brasileiro) – foi entusiasmante.

 

Excerto do livro «Verdade Tropical» de Caetano Veloso

 

Domingo no parque

 

publicado por adignidadedadiferenca às 20:54 link do post
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