CAT POWER E MICAH P. HINSON
Se esperei este tempo todo para falar de «Jukebox», o álbum de versões de Chan Marshall publicado logo no início deste ano, acabei por ser recompensado pela edição do novo disco de Micah P. Hinson «micah p. hinson and the red empire orchestra» e, favorecido pelo acaso, poder associar a música dos dois que - quem ousará negá-lo? – habita o mesmo espaço estético.
E quando falamos da sua música falamos de canções duras e desapiedadas, construídas por quem há muito se deixa consumir por uma existência amarga e tantas vezes caminhando sobre o fio da navalha. É verdade que o rosto de ambos é enganadoramente doce – Micah P. Hinson nunca abandonará aquele ar imberbe de puto do liceu e Chan Marshall parece um anjo que desceu à terra -, mas a voz e a letra das canções denunciam, logo à primeira audição, o pó que pisaram.
Se a matéria de que são feitas as canções cruas e autênticas de Micah P. Hinson é a mesma que moldou a carreira de John Cale, Mark Eitzel, Scott Walker ou Hank Williams, Chan Marshall optou no seu disco de versões por escolher autores da mesma estirpe, a dos espíritos inquietos e desventurados: Bilie Holiday, James Brown, Hank Williams (também), Bob Dylan e nem sequer se esqueceu de si própria.
O primeiro tem o selo de quem já sofreu mais agruras da vida do que aquelas que a sua idade permite (23 anos) e as histórias que se desenrolam numa atmosfera indie-pop-folk-rock vagamente descuidada, mais não fazem do que confirmá-lo. Chan Marshall apropria-se literalmente das canções que interpreta com uma esplêndida voz de quem já abandonou este mundo mais que uma vez. Depois de escutadas, passamos a sentir aquelas canções unicamente como suas. E se nos garantirem o contrário, estamos prontos a negá-lo sob juramento. «New York» nunca morou na voz de Sinatra, «Ramblin’ (Wo)man» não é de Hank Wiliams, Dylan nunca escreveu «I believe in you» ou, se o fez, estava (obviamente) a pensar em Chan Marshall. Com as restantes passa-se o mesmo. A suprema ironia de um disco de versões é ser «Metal Heart», composta por Marshall, provavelmente a melhor canção de «Jukebox».
Duas obras pontualmente diferentes, mas que convergem no mesmo rumo estético e se alimentam das partidas que a vida insiste em pregar.
Se o que ficou para trás já o anunciava, as publicações deste ano confirmam-no em absoluto: dois inseparáveis irmãos de sangue.
ALEKSANDR SOKUROV
Quem faz parte da mesma família é o cineasta russo Aleksandr Sokurov que, depois do verdadeiro «tour de force» que foi «A Arca Russa» (filmado num único plano-sequência) - «Moloch» ainda não cheguei a ver -, lançou este ano o magnífico e bastante acessível «Alexandra».
Se o cenário é, tal como o dos dois músicos, desconfortável e, por vezes, francamente cruel – o filme conta-nos a história de Nikolaevna, avó que vai visitar o neto na frente russa da Tchetchénia e que depara com um mundo onde está ausente a sensibilidade, o conforto, a riqueza e a manifestação natural de emoções e sentimentos.
Sokurov mostra, no entanto, uma capacidade extraordinária para enriquecê-lo - como contraponto estético a uma certa austeridade (no bom sentido) própria de Tarkovski – com um sopro divino que tomou conta da sua câmara de filmar e que é próprio de quem ama profundamente a terra como se esta fosse sua. Se a memória não me falha, talvez apenas Dovjenko o tenha feito de forma mais perfeita.
De Sokurov, quem ainda se lembra do magnífico «Mãe e filho» assinado quase no final do século XX?