a dignidade da diferença
30 de Novembro de 2008

 

CAT POWER E MICAH P. HINSON

 

Se esperei este tempo todo para falar de «Jukebox», o álbum de versões de Chan Marshall publicado logo no início deste ano, acabei por ser recompensado pela edição do novo disco de Micah P. Hinson «micah p. hinson and the red empire orchestra» e, favorecido pelo acaso, poder associar a música dos dois que - quem ousará negá-lo? – habita o mesmo espaço estético.

E quando falamos da sua música falamos de canções duras e desapiedadas, construídas por quem há muito se deixa consumir por uma existência amarga e tantas vezes caminhando sobre o fio da navalha. É verdade que o rosto de ambos é enganadoramente doce – Micah P. Hinson nunca abandonará aquele ar imberbe de puto do liceu e Chan Marshall parece um anjo que desceu à terra -, mas a voz e a letra das canções denunciam, logo à primeira audição, o pó que pisaram.

Se a matéria de que são feitas as canções cruas e autênticas de Micah P. Hinson é a mesma que moldou a carreira de John Cale, Mark Eitzel, Scott Walker ou Hank Williams, Chan Marshall optou no seu disco de versões por escolher autores da mesma estirpe, a dos espíritos inquietos e desventurados: Bilie Holiday, James Brown, Hank Williams (também), Bob Dylan e nem sequer se esqueceu de si própria.

 

 

O primeiro tem o selo de quem já sofreu mais agruras da vida do que aquelas que a sua idade permite (23 anos) e as histórias que se desenrolam numa atmosfera indie-pop-folk-rock vagamente descuidada, mais não fazem do que confirmá-lo. Chan Marshall apropria-se literalmente das canções que interpreta com uma esplêndida voz de quem já abandonou este mundo mais que uma vez. Depois de escutadas, passamos a sentir aquelas canções unicamente como suas. E se nos garantirem o contrário, estamos prontos a negá-lo sob juramento. «New York» nunca morou na voz de Sinatra, «Ramblin’ (Wo)man» não é de Hank Wiliams, Dylan nunca escreveu «I believe in you» ou, se o fez, estava (obviamente) a pensar em Chan Marshall. Com as restantes passa-se o mesmo. A suprema ironia de um disco de versões é ser «Metal Heart», composta por Marshall, provavelmente a melhor canção de «Jukebox».

Duas obras pontualmente diferentes, mas que convergem no mesmo rumo estético e se alimentam das partidas que a vida insiste em pregar.

Se o que ficou para trás já o anunciava, as publicações deste ano confirmam-no em absoluto: dois inseparáveis irmãos de sangue.

 

 

 

 

ALEKSANDR SOKUROV

 

Quem  faz parte da mesma família é o cineasta russo Aleksandr Sokurov que, depois do verdadeiro «tour de force» que foi «A Arca Russa» (filmado num único plano-sequência) - «Moloch» ainda não cheguei a ver -, lançou este ano o magnífico e bastante acessível «Alexandra».

Se o cenário é, tal como o dos dois músicos, desconfortável e, por vezes, francamente cruel – o filme conta-nos a história de Nikolaevna, avó que vai visitar o neto na frente russa da Tchetchénia e que depara com um mundo onde está ausente a sensibilidade, o conforto, a riqueza e a manifestação natural de emoções e sentimentos.

Sokurov mostra, no entanto, uma capacidade extraordinária para enriquecê-lo  - como contraponto estético a uma certa austeridade (no bom sentido) própria de Tarkovski – com um sopro divino que tomou conta da sua câmara de filmar e que é próprio de quem ama profundamente a terra como se esta fosse sua. Se a memória não me falha, talvez apenas Dovjenko o tenha feito de forma mais perfeita.

De Sokurov, quem ainda se lembra do magnífico «Mãe e filho» assinado quase no final do século XX?

 

 

23 de Novembro de 2008

 

JAMES CARTER

 

Agora que o final do ano se aproxima e, por isso, escasseia o tempo para ir apresentando algumas das obras mais marcantes que foram publicadas durante os últimos onze meses, eis uma boa altura para falar de dois excelentes discos que fui ouvindo recentemente e que, posso garanti-lo, farão parte da minha lista dos indispensáveis do ano.

O primeiro é assinado por um músico de jazz – James Carter -, chama-se «Present Tense» e faz parte daquele género de música enganadoramente antiquada que, quanto mais se escuta, nos prende a atenção pelo classicismo, rigor musical e instrumental – James Carter é aquilo a que poderemos chamar um sobredotado -, pela abordagem e concisão histórica e, não menos importante, pela marca contemporânea que deixa em cada peça gravada.

Uma espécie de reconstrução de um edifício antigo destruído pelo tempo, onde toma forma o traço antigo do material em reconstrução – seja o bop, o romantismo ou o espírito presente de Django Reinhardt -, cujos alicerces são os excelentes músicos que acompanham o autor (o trompetista Dwight Adams, o guitarrista Rodney Jones, o pianista D. D. Jackson, James Genus no contrabaixo e Victor Lewis e Eli Fountain nas percussões) e que, com passar do tempo, vão, lenta mas seguramente, criando uma música nova e actual, através de uma leitura ecléctica, ritmicamente formidável, luxuriante e insinuante.

 

 

 

RENÉE FLEMING

 

 

O segundo disco que aconselho é a interpretação fabulosa da obra de Richard Strauss, da responsabilidade da soprano Renée Fleming. Se tudo o que escutamos é brilhante, colorido e emocionalmente avassalador, a jóia da coroa só podia ser a gravação das crepusculares «Vier Letzte Lieder/Four Last Songs» que a intérprete, acompanhada pela Orquestra Filarmónica de Munique dirigida por Thielemann, estica quase até ao infinito e que rivaliza, sem favor algum, com as lendárias gravações de Schwarzkopf e de Lisa Della Casa.

Se ambos são absolutamente indispensáveis, o disco de Renée Fleming entra directamente para a discoteca básica fundamental de qualquer melómano que se preze.

 

 

 

20 de Novembro de 2008

 

 

Chamada de atenção urgente para a reedição da obra de Né Ladeiras durante os anos em que gravou para a Valentim de Carvalho, inserida na colecção «No tempo do vinil». Ao disco deram o título «Essência, Os anos Valentim de Carvalho 1982-1983» e nele está incluído, além de «Sonho Azul», o espantoso maxi-single (na altura da sua edição em vinil) «Alhur».

Um disco absolutamente transcendente, mágico, habitado por uma voz de sonho acompanhada por uma música em permanente estado de levitação.  A oportunidade, quase inacreditável, de podermos voltar a escutar Húmus verde, Holoteta, Essência e Alhur, as magníficas canções (?) cujo som não se aproxima, em nada, do que outros fizeram neste país. Nem antes nem depois da obra.

Uma viagem deslumbrante e com rumo incerto, cujos protagonistas tiveram como bússola, unicamente, um mapa musical até então desconhecido e posteriormente esquecido.

De um encontro casual entre Né Ladeiras, Miguel Esteves Cardoso e os músicos que, na época, formavam os Heróis do Mar, nasceu um portentoso manifesto estético e musical, fundador de uma música sem tempo e vinda de lugar nenhum, etérea, intíma e plasticamente transparente.

Um das raras vezes em que a música portuguesa fez abanar a terra. Ao pé deste assombro, «Sonho Azul», talvez um pouco injustamente, faz figura de obra menor.

Se depois desta vier a reedição de «Corsária», começo a acreditar que o mundo, afinal, não é tão mau como, teimosamente, parece.

 

 

 

 

publicado por adignidadedadiferenca às 21:20 link do post
16 de Novembro de 2008

 

 

Eis o retrato realista e cruel da impossível (?) relação entre professores e alunos insolentes e com pouca vontade de aprender o que a escola tem para lhes ensinar. O cenário é o de uma escola pública situada em Paris onde um professor, director de uma turma multicultural e multirracial, vai perdendo a paciência (e a razão?) ao longo do ano lectivo, conforme vai tomando consciência da impossibilidade em conseguir fazer-se respeitar, controlar e ensinar os seus alunos numa sala de aulas.

Se não encontramos neste livro aquilo a que costumamos chamar «grande literatura», é inegável que se trata de um documento de vital importância para quem segue e se interessa pelo sistema de ensino – e não nos podemos esquecer que tudo isto também podia acontecer numa escola portuguesa -, onde o autor utiliza a escrita que lhe parece mais adequada ao seu discurso, por vezes trágico, outras vezes cómico, mas que nos consegue transmitir todo o cansaço que se vai apoderando dos professores daquele estabelecimento de ensino, assim como toda a apatia e indiferença generalizada dos alunos, culminando na dificuldade de comunicação entre ambos – e convém recordar as episódicas presenças dos pais dos alunos -, como podemos verificar, por exemplo, nos conselhos disciplinares que acabam, não raras vezes, nas expulsões.

O leitor interessado sente um autêntico murro no estômago ao verificar como aquilo que, aparentemente, quase todos defendemos, isto é, o conceito de uma escola pública para todos, se arrisca a ser materialmente insustentável quando exposto ao duro contacto com a selvagem realidade.

O autor defende que não será bem assim, ao aceitar que o caos que se vive nas escolas públicas é o preço a pagar por serem para todos.

Claro que, depois do livro, maior é a vontade de ver o filme. A data já está agendada. Não tarda muito, voltaremos a falar. Ou talvez não.

 

FLANNERY O’CONNOR

 

 

Se o desejo do leitor é a chamada grande literatura clássica com a capacidade interior de nos fazer arrancar, literalmente, os pés do chão, então «O céu é dos violentos», de 1960, é o romance ideal que deve, desde já, conhecer (e divulgar).

Mesmo para um ateu confesso como eu, esta é uma obra avassaladora, cuja atmosfera varre tudo, mas mesmo tudo, o que gira em seu redor. A genial escritora introduz-nos num mundo violento, habitado por personagens demenciais, obsessivas, corajosas e em luta permanente contra o destino que lhes foi traçado.

A história conta-se em poucas palavras, como aquelas que se apoderaram da contracapa da edição portuguesa do livro (publicado pela Cavalo de Ferro) e que passo a transcrever: Este segundo e último romance de Flannery O’Connor, narra a história de Francis Tarwater, um adolescente de catorze anos, que tenta a todo o custo escapar ao destino que lhe foi traçado desde tenra idade: seguir as pisadas do avô, um profeta fanático, com uma visão muito especial dos ensinamentos bíblicos. Quando o avô de Francis morre, logo no início do romance, o rapaz renega os seus ensinamentos, pega fogo à propriedade rural onde ambos viviam e vai ao encontro do seu tio, Rayber e do filho deste, Bishop, uma criança mentalmente atrasada. No entanto, Francis descobre que a força do destino se sobrepõe à sua nova vida secular e, através de um acto de extrema violência, reconcilia-se com a verdadeira missão da sua vida.

Ninguém pode ficar indiferente a esta linguagem extremada, brutal quando tem que ser, irónica, viciante e poderosa que no seu tempo alargou, um pouco mais, os limites estéticos estabelecidos para a ficção.

Tomando de empréstimo as palavras que Ana Cristina Leonardo (crítica literária do «Expresso») usou para terminar o texto que assinou sobre este romance espantoso: esta não é, definitivamente, uma obra para copinhos de leite.

Directamente para a lista das melhores publicações deste ano.

 

publicado por adignidadedadiferenca às 21:05 link do post
14 de Novembro de 2008

 

Sócrates não pára! O nosso primeiro-ministro acaba de criar o primeiro carro acessível à bolsa de todos os portugueses. Depois da revolução no sistema educativo (acha ele), a revolução chega à condução. Um mimo inteiramente português!

 

 

 

publicado por adignidadedadiferenca às 20:22 link do post
09 de Novembro de 2008

 

Arturo Benedetti Michelangeli plays Debussy (Images, Children's Corner 1971 / Préludes I 1978 / Préludes II 1988)

 

 

 

O casamento perfeito entre a música impressionista do compositor francês Claude Debussy (1862-1918) - evocativa de um determinado estado de espírito ou atmosfera, rebuscando, não raras vezes, memórias de sons naturais e ritmos de dança, passagens melódicas contemplativas ou de sabor oriental que definem, grosso modo, as principais características da música revolucionária que o compositor francês criou na viragem do século XIX para o século XX  - e a sobriedade expressiva do assombroso pianista Arturo Benedetti Michelangeli (1920-1995), cujas lendárias ausências, retiradas e silêncios lhe conferiram uma aura mítica semelhante à de outro soberbo pianista do século XX: Glenn Gould.

O mais importante e o que nos fica na memória é o gesto livre e natural que sobressai desta interpretação magnífica do pianista italiano, capaz de oferecer, numa bandeja de oiro puro, doses deslumbrantes de música transparente e, por vezes, quase invísivel, reproduzindo um prodigioso ambiente sonoro nocturno com ecos de uma subtil fantasia poética.

 

Nunca, como neste disco, as peças musicais de Debussy - que constituem o mais importante contributo do início do século XX para o reportório do piano enquanto instrumento solista -, estiveram em tão boas mãos. Um estilo arrojado e profundamente lírico, numa busca permanente pela pureza e perfeição da música, deixa-nos como legado uma gravação histórica, radicalmente poética e portadora de uma sensibilidade primorosa, elegante e transgressora.

 

Uma obra, a todos os títulos, admirável.

 

 

 

publicado por adignidadedadiferenca às 20:29 link do post
04 de Novembro de 2008

 

Suzanne Vega «Blood makes noise»

 

Não há que ter receio das palavras. Este foi o momento em que Suzanne Vega virou de pantanas a (óptima) carreira de folk-singer e, com a ajuda da ferrugem falsamente retro de Tom Waits, que suporta as magníficas letras de inspiração literária, apoiadas num apuradíssimo instinto pop abraçado ao que de melhor nos deixou Philip Glass, com visitas frequentes à secura de Lou Reed e ao realismo dos Velvet Underground - casado no regime de comunhão de bens com o estilo vibrante de Bob Dylan -, criou um corpo musical completamente novo e genial, portentosa e requintadamente desenhado pela mente claustrofóbica e colorida de Mitchell Froom (seu marido na altura e co-responsável, entre uma série de obras notáveis, pelos fabulosos «Mighty like a rose» de Elvis Costello e «Mercury» dos American Music Club.

Suzanne Vega voltou a ser enorme, mas assim nunca mais a vimos. Uma canção extraordinária que fez parte do sublime «99.9 Fº» de 1992.

 

 

 

I'd like to help you doctor

Yes I really really would

But the din in my head

It's too much and it's no good

I'm standing in a windy tunnel

Shouting through the roar

And I like to give the information

You're asking for

But blood makes noise

It's a ringing in my ear

Blood makes noise

And I can't really hear you

In the thickening of fear

I think that you might want to know

The details and the facts

But there's something in my blood

Denies the memory of the acts

So just forget it Doc.

 

I think it's really

Cool that you're concerned

But we'll have to try again

After the silence has returned

Cause blood makes moise

It's a ringing in my ear

Blood makes noise

And I can't really hear you

In the thickening of fear

Blood makes noise...

 

publicado por adignidadedadiferenca às 23:25 link do post
03 de Novembro de 2008

 

Cenas quase «pornográficas» do Magalhães Ibero-Americano protagonizadas por um tecnocrata provinciano. Nunca se viu tal coisa...

 

 

publicado por adignidadedadiferenca às 00:29 link do post
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