Dois irmãos com múltiplas personalidades só poderiam fazer música assim. Espíritos mordazes e inquietos traçados a régua e esquadro por melodias de desenho animado electrocutadas constantemente por descargas brutais de electricidade, ampliadas por uma teimosia rítmica de braço dado com harmonias de brinquedo explodindo inevitavelmente num caos sonoro com tanto de mágico como de alucinante.
Pedaços psicadélicos dos Beatles da fase “Strawberry fields forever/Penny lane” de mãos dadas com o rock típico dos anos setenta, com acento tónico nos Led Zeppelin, derrapam e desaceleram simultaneamente com a ajuda de micro-organismos minimalistas, lunáticos ou futuristas que, apoiados numa bela voz de celofane que também sabe ser neutra e possessa quando o momento assim o exige, formam um dos mais fascinantes e surpreendentes manifestos artísticos dos últimos anos.
Numa espécie de Atlântida afundada nas entranhas da Terra, ergue-se uma visão singular e soberba que reflecte para o universo musical aquilo que esperamos encontrar após o choque brutal de um cometa com o planeta: canções fragmentadas e explosivas, intercaladas com momentos de aparente tranquilidade, visitadas por sinfonias em crescendo espezinhadas por rugidos aterradores vindos do espaço. Dito de outra maneira, o céu e o inferno juntos na mesma canção, nunca sozinhos e separados.
Claro que muitas outras influências se sentem neste disco, desde a produção de estúdio à Brian Eno, passando pelos restos que Moondog deixou dos seus discos, ou, finalmente, pelo som incendiário dos Sonic Youth ou dos My Bloody Valentine. Mas, podem acreditar, o que nos oferecem os Fiery Furnaces, depois de muito bem digerido, é algo de completamente novo e personalizado que, como pode comprovar quem já os conhece de obras anteriores, vem sendo persistentemente construído desde a sua estreia.
Muito, muito bom. Venha o próximo.