Snowleg, a imagem do teu rosto - Nicholas Shakespeare
Peter descobre aos 16 anos que o pai não é o inglês que está casado com a sua mãe, mas sim um dissidente político da RDA, com quem ela tivera um breve romance nos anos de 1960, descoberta que o faz decidir, atraído pela curiosidade, partir para a Alemanha Ocidental (Hamburgo) em busca do seu passado.
Eis o ponto de partida para um belíssimo e intimista romance, aconselhado por um amigo, de um autor para mim desconhecido até há bem pouco tempo.
A história prossegue e conta-se em breves trechos: Peter, a dado passo, atravessa a cortina de ferro e, em Leipzig, apaixona-se por uma jovem alemã de leste que vive a fase em que se começa a questionar o mundo e a política dos seus governantes.
Numa das primeiras coincidências incluídas no romance, revela-se muito do talento do autor. Refiro-me à tentativa que Peter faz para levar consigo Snowleg - alcunha da rapariga alemã que ele não consegue pronunciar correctamente - e afastá-la daquele estado repressivo. O protagonista, num acto de cobardia, falha no momento decisivo, precisamente aquilo que acontecera com o seu pai muito tempo antes.
Magistralmente, o escritor narra a transformação profunda que, daí em diante, vai sofrer a personalidade de Peter, cujas questões morais, provocadas pelo acto que ele assume como um pecado, o vão perseguir de uma forma avassaladora e assaz inquietante.
Os anos vão passando, Peter vai (des)construíndo a sua vida de dedicação à medicina, mas o que poderá ter acontecido a Snowleg não lhe sai da memória.
A narrativa vai-se desenvolvendo como se de um puzzle se tratasse, as personagens que vão aparecendo e participando na vida do protagonista têm a espessura dramática suficiente para serem credíveis e são feitas de carne e osso, com expressão máxima nessa fantástica idosa que ele trata nos seus últimos dias de vida e que mais tarde descobriremos ser a avó da jovem de Leipzig.
Julgo ser irrelevante contar o que resta da história, assim como estar aqui a discutir questões linguísticas a nível semântico, gramatical ou de síntaxe (embora elas sejam obviamente importantes). O que me interessa são essencialmente as preocupações morais que o romance levanta de forma profunda e obsessiva (e ao mesmo tempo, tão natural): que consequências negativas pode trazer a outra pessoa um acto de cobardia, e qual a melhor forma de corrigir o facto de ela ter sido abandonada quando mais precisava dele?
A melhor forma não existe, mas Peter descobriu que a única possível é deixar de fingir que nada de importante aconteceu, parar de riprimir os seus sentimentos relativamente à jovem e decidir partir à sua procura, o que vai acontecer já depois da reunificação dos dois países.
Quase tudo no livro é assombroso, mas não quero terminar sem destacar a soberba narração a preto e branco da paranóia e do terror que a Stasi e o regime da RDA provocaram a tanta gente, da intencional opção do romancista por um registo lírico e intimista em vez de um tom épico mais facilmente apelativo, e, por fim, dois momentos sublimes: A ideia de culpa que não larga Peter, mesmo depois de ele saber que a fuga planeada para a companheira já era conhecida pela polícia secreta e que, caso se concretizasse, tornaria a vida de ambos muito pior. E, momento único e irrepetível de todo o livro (que só quem o leu irá compreender), a forma absolutamente inesperada e arrepiante - que ainda me espanta e impossibilita de falar - como nos é contado o reencontro final de Peter com Snowleg, depois de horas antes ele não a ter reconhecido, e que não posso deixar de transcrever as últimas linhas: «Ela estava a uns quatro, cinco passos de distância. Levantou a polaróide à altura do olho. Mas diante de Peter, o que começou a ganhar forma foi a fotógrafa e não a imagem. Uma escotilha ergueu-se lentamente e ele sentiu o ar fresco a entrar e a descer, ensopando-o, e toda a confusão, culpa, tristeza, solidão do seu passado e presente, a saírem. Snowleg. Mas ele não consegue falar. Não consegue mover-se. Vê-a caminhar na sua direcção. Ela pega-lhe no braço. - Peter.»
Nem um átomo a mais nem a menos. O limite de emotividade e o máximo de expressividade.
Porque são as histórias onde a procura da felicidade segue os caminhos mais esconsos e terríveis, as mais intensamente belas?