Dos lugares que os homens criaram para se abrigar, o café é o que mais rua tem. Por isso, Mário Cesariny gostava tanto de cafés. Aí, sentia-se onde a poesia estava, onde «sempre esteve». Aí, lembrando Lautréamont, podia fazê-la em comum. Foi em cafés que escreveu os poemas. Foi em cafés que conversou com os amigos e até com os inimigos. Foi em cafés que fitou os corpos com um olhar que os tornava mais visíveis. Era nos cafés, e no que eles tinham de rua, que se sentia verdadeiramente em casa. Cafés cheios de fumo e de fadiga e de fuga e de fúria. Cafés onde se estava porque não havia sítio melhor para estar. Cafés que resumiam o seu entendimento da vida: café-manicómio, café-convés, café-asilo, café-escritório, café quase salão e, pois claro!, café-de-engate. Viciado em cafés, nunca o vi aí tomar um café. Pedia uma água mineral e, muitas vezes, usava-a para lavar as mãos, porque desconfiava que, depois de bebida, a garrafa era enchida pelo dono da casa. Ria e, enquanto a vertia nos dedos em ablução ritual, olhava à volta para a «malandragem» que habitava as mesas e exclamava: «A água é a única coisa que não é de confiança neste café». Nos tempos gloriosos do grupo surrealista, era nos cafés (Herminius, Royal, Gelo) que se incendiavam a eles próprios e era a partir dos cafés que queriam incendiar o mundo. Depois, toda a sua vida foi vivida, nocturnamente, em cafés, até que os cafés acabaram e ele começou a acabar como eles.
José Manuel dos Santos, O Espelho Vazio