Uma boa versão de uma canção não necessita obrigatoriamente de ter um conceito teórico a sustentá-la. Podemos, porém, conduzir as praticamente inesgotáveis formas de reinterpretar uma canção a estas três ideias-chave: a mera cópia, assente numa atitude excessivamente cerimoniosa perante as sagradas escrituras, a qual acaba consumida pela sua absoluta inutilidade; a releitura personalizada (mais ou menos conseguida) que, sem abalar significativamente o espírito inicial da canção, traz novos elementos para o corpo desta, materializando-se numa reconfiguração da sua matriz original; e, por fim, a pura iconoclastia, cujos resultados se traduzem numa apropriação total do objeto reinterpretado.
Considerações teóricas à parte, na medida em que, em última análise, acaba por ser no plano prático que nos apercebemos verdadeiramente da qualidade (ou da falta dela) de uma versão, começo este novo capítulo apresentando a reinterpretação de Jezebel, a cargo de Anna Calvi (de quem, a propósito, acaba de chegar um novíssimo e esplêndido álbum). Podemos, deste modo, comparar a sua versão com a hiperclássica leitura nas mãos (e na voz) de Edith Piaf, talvez a mais conhecida das muitas gravações desta peça musical. Sem demolir nem fazer esquecer os méritos da leitura de Piaf, Anna Calvi acrescenta-lhe uma energia porventura superior e uma mise-en-scène operática que não existia na versão anterior. Uma reconfiguração exemplar.