Depois de ter recusado a proposta de Goebbels para dirigir o cinema do III Reich, Fritz Lang realizou em França, antes da partida para a América, este singular, pouco visto e notável Liliom (de 1934). Sob uma aparência ligeira, simpática e festiva, o filme esconde uma profundidade e complexidade que só os espectadores mais atentos terão capacidade para decifrar. Mestre da concisão narrativa – como se veria nos seus filmes americanos – Fritz Lang questiona, como acertadamente referiu Bénard da Costa, a incompatibilidade entre um Deus generoso e um Deus justiceiro. Liliom, constantemente acossado pela punição policial, não tem descanso para lá da morte, permanece a eterna visão do Inferno. No além, continua a ser perseguido pela justiça e a suprema ordem moral utiliza os mesmos procedimentos e burocracia administrativa. Uma ordem moral subvertida, a quem interessa sobretudo os sacrifícios e muito pouco a generosidade – basta, para chegarmos a esta ideia, compreender a cena dos pratos da balança. Inicialmente feérico, impressionista, homenageando o cinema francês e seu grande mestre Renoir, o filme, assim que cresce de intensidade a relação entre Liliom – provavelmente, o papel da vida de Charles Boyer - e Julie, vai-se densificando, escurece, sobe de tensão, provoca pequenas rupturas na relação entre os personagens, até culminar na fundamental oposição entre o lugar onde Liliom se diverte e o espaço policial: falsamente moralista – veja-se a sequência que revela a diferença do tratamento dado a um visitante rico e a um vagabundo - proibitivo e punitivo. Liliom, com uma magnífica fotografia a preto e branco, é, como vimos, uma admirável denúncia da repressão que se manifesta sob a cobertura de uma ideia total de justiça. Vimo-lo ontem à noite numa sala da Cinemateca Portuguesa.