"Ao contrário do que sugerem algumas narrativas amáveis, talvez a história da poesia em Portugal se faça sobretudo de perigos de afogamento e salvamentos in extremis, a começar por Camões, tornado, sem culpa própria, o poeta, por estafada antonomásia em que as celebrações são pródigas.(...) o ritual das comemorações poderá aproximar a poesia da pólis e sustentar um lugar simbólico que vai persistindo, apesar do confinamento a que a sua prática e leitura são relegadas, mas celebrar a antiquíssima arte dos versos é também, com demasiada frequência, um modo de a alienar naquilo que tem de mais irredutível." José Manuel Teixeira da Silva, Introdução a "O Esperado Fim do Mundo Já Partiu", antologia poética de Egito Gonçalves, Editora Língua Morta.
Tem um pouco da singularidade poética de Tim Buckley, Van Morrison, John Cale, Leonard Cohen, e muito da excêntrica intensidade de Mary Margaret O'Hara, embora não se pareça com nenhum deles. Criando um universo musical com arritmias e um olhar simultaneamente despojado, tradicional e assombradamente orquestral, Lisa O'Neill canta sobre as estrelas, os rios, as flores, os pássaros, a chuva e o vento; espalhando, em suma, imagens da natureza em catadupa. Vem da Irlanda, mas a sua voz parece de outro planeta...
Avessos à ideia de grandeza, à vaidade, ao estatuto e à pretensão, considerando o orgulho supérfluo e desadequado, cultivando o sujeito quotidiano e o propósito acessório, os breves textos reunidos neste livro pautam-se por exíguas descrições e despojados apontamentos sobre pequenas coisas ou objectos insignificantes, que, praticamente ignorados, resistem discretamente à sofreguidão do tempo. Fosse Robert Walser músico e o que se escutaria nos seus livros seria música de câmara rendilhada em pequenas subtilezas. Delicada, melancólica, miudinha e penetrante, diluída em gotículas e mantida num aparente secretismo, que é dissipado, no entanto, quando, recordando-a, me apercebo que a marca da sua doçura e fina ironia ficou cá.
«Este livro pretende relacionar e coser as dimensões estéticas, artísticas, filosóficas e pessoais da vida de Nadir, de modo a tentar fechar o círculo que as une. Quer destapar os porquês e descobrir o homem nessas interrogações. Para este projecto interessou, pois, encontrar os caminhos de Nadir Afonso Rodrigues, o homem, que o levaram até Nadir Afonso, o artista, o pensador – trilhos nos quais surgem, necessariamente, as suas obras plástica e ensaística, as quais decidi meramente reflectir e contextualizar, como o rosto ténue de alguém que se observa em águas calmas, a partir das palavras do próprio Nadir, de especialistas na sua obra ou dos seus familiares directos, os que o conhecem mais perfeitamente, e nunca a partir das minhas interpretações ou opiniões: o biógrafo é um espelho e não pode ambicionar a mais.» Guilherme Pires in «O Homem Infinito, Vida e Obra de Nadir Afonso»; biografia essencial que faz justiça ao pintor, arquitecto e pensador, bem como à criação de uma vasta e importante obra plástica (em que cabe, entre outros, o modernismo, o surrealismo, o expressionismo, o abstraccionismo e o realismo geométrico) - mal conhecida e insuficientemente divulgada -, cujos pioneirismo e originalidade das soluções estéticas e teóricas foram o fruto de um aturado e firme trabalho de reflexão rumo à essência da arte. Um «esboço interminável», nas palavras do biógrafo, que sobressai no contexto artístico contemporâneo.
O curioso contraste entre o optimismo inicial de Gilberto Gil «Pela Internet» - Eu quero entrar na rede/Promover um debate/Juntar via Internet/Um grupo de tietes de Connecticut - há cerca de 25 anos, e o canto fúnebre que ilustra os efeitos da passagem do tempo após a experimentação, em «Anjos Tronchos», de Caetano Veloso, uma das canções do recente e magnífico «Meu Coco», exemplo maior da raridade de uma música que continua a atravessar gerações e territórios, prova inequívoca e veemente da vitalidade, necessidade e actualidade do tropicalismo na afirmação da pluralidade brasileira.
Em 2011, no aclamado «Pensar, Depressa e Devagar», o psicólogo Daniel Kahneman descrevia a vida mental através da metáfora de dois agentes, chamados Sistema 1 e Sistema 2, que produzem respetivamente o pensar depressa e o pensar devagar, referindo-se às características do pensamento intuitivo e do deliberado como se fossem traços e disposições de duas personagens na nossa mente, afirmando que da investigação recente se chega à imagem de um intuitivo Sistema 1 mais influente do que aquilo que a nossa experiência nos diz, autor oculto de muitas escolhas e juízos que construímos. A maior parte desse livro examinava o funcionamento do Sistema 1 e as mútuas influências entre os dois sistemas. Em co-autoria com outros dois académicos, Olivier Sibony e Cass R. Sunstein, Kahneman regressa com «Ruído», cujo tópico é o erro humano, em que o enviesamento (desvio sistemático) e o ruído (dispersão aleatória) são componentes diferentes do erro. Nesta obra os autores explicam o que pode correr mal no juízo humano, no domínio das diferentes decisões que as pessoas tomam em nome de organizações, concluindo que muitas organizações são «afectadas por juízos enviesados e ruidosos». Dividido em seis partes, o livro observa a diferença entre ruído e enviesamento, pesquisa a natureza do juízo humano e explora a forma de determinar as margens de erro e precisão, afirma a vantagem de regras, fórmulas e algoritmos para fazer previsões, explica as causas determinantes do ruído, questiona como podemos melhorar os juízos, observa o que nos pode beneficiar e prejudicar no momento de tomar decisões e trata, por fim, da questão quanto ao nível adequado de ruído, preocupando-se em auxiliar os leitores a ultrapassar o ruído e o enviesamento tendo como finalidade melhorar a qualidade das suas decisões cujo impacto (e custo) supera o que estes imaginam.
«Poesia Ilustrada», esculpida nos intervalos do silêncio, encontrava na justa medida de uma frase, no murmúrio de um verso, a silhueta do seu perfil melancólico, refugiado entre gestos de ternura e movimentos de uma serena amargura, perdurando uma fortíssima relação com a natureza, fixando, nas paisagens agridoces que habitam a gramática dos poemas, as emoções, os desejos e as confissões sussurradas pela autora, compilados num esboço rejuvenescido do seu universo real de memórias, cores e pequenas sombras. A poesia de Maria Sousa prossegue com «Não Abras a Porta a Estranhos» - estojo de poemas curtos encaixados uns nos outros ou albergue de um poema contínuo - evoluindo de uma silhueta melancólica para um perfil mais hipnótico. A forma apurou-se, os poemas têm um compasso próprio e tornaram-se mais coesos e concisos. A solidão que já se sentia anteriormente num vislumbre conta-se agora a partir de casa, a casa que a autora evoca através do seu passado e das suas memórias, mas não só; a ausência, o silêncio e o vazio sentem-se no contacto físico com portas, janelas, armários, corredores ou quartos. Na força e nos múltiplos significados do (s) poema (s) pressente-se a escuridão e o abandono que nos aperta, mas esse pesar é equilibrado e estende-se amiúde pelo calor e apego dos cigarros, o contacto do telefone, a leitura das cartas, o badalar do relógio ou o reflexo dos espelhos. Vive-se naquela casa e a solidão que a ocupa fere-nos, mas também nos prende pela força deste belíssimo livro de poesia.
«Para criar uma economia mais justa, onde a prosperidade seja mais amplamente partilhada e, por conseguinte, mais sustentável, precisamos de atribuir uma nova energia a uma discussão séria sobre a natureza e origem do valor. Temos de repensar as histórias que estamos a contar sobre quem são os criadores de valor e o que isso nos diz sobre como definimos atividades enquanto produtivas e improdutivas economicamente. Não podemos limitar a política progressista à tributação da riqueza, mas sim exigir uma nova compreensão da criação de riqueza e um debate sobre ela de modo a que seja contestada mais incisiva e abertamente. As palavras são importantes: precisamos de um novo vocabulário para a elaboração de políticas. A política não tem que ver apenas com “intervir”. Tem que ver com moldar um futuro diferente: participar na criação de mercados e valor e não se limitar a “consertar” mercados ou redistribuir valor. (…) Podemos criar uma economia melhor mediante a compreensão de que os mercados são resultado de decisões tomadas – nas empresas, nas organizações públicas e na sociedade civil.» Debatendo com clareza o conceito de valor, criticando a hipotética produtividade de actividades que se limitam a extrair ou transferir valor em vez de o gerar, acusando um sistema financeiro parasitário alicerçado no lucro a curto prazo ao mesmo tempo que defende convictamente politicas públicas para o corrigir, Mariana Mazzucato, com invejável sentido pedagógico e apurado rigor analítico, desintegra habilmente uma série de teorias económicas mais recentemente urdidas como inevitáveis.
Impressionismos, abstracções sonoras, cânticos que desafiam a lei da gravidade, lamentos arrepiantes da natureza, vestígios de um mundo apocalíptico e aproximações (sobretudo) ao universo estético de Laurie Anderson, Meredith Monk e Annette Peacock, moldam a mais recente e personalizada gravação de estúdio de Julia Holter, que sucede à do belíssimo "Have You In My Wilderness" (de 2015), exibindo aquele género muito particular de música que apetece esconder do resto do mundo e manter como um segredo bem guardado. Um álbum (Aviary) inclassificável, progressivamente viciante, extraordinário e de fulgurante variedade expressiva. O futuro é já ali...
Algo esquecido nas retrospectivas oficiais do cinema italiano, Valerio Zurlini, pertencendo à mesma família estética de Jacques Becker e Nicholas Ray - autores que, como deles já se escreveu um dia, da câmara quiseram fazer música de câmara -, merece, contudo, figurar entre os maiores (Visconti, Rossellini, Fellini, Antonioni, Pasolini). Embora a sua escassa obra (oito filmes) pouco ajude, não se compreende ainda assim como terá escapado a tantos cinéfilos a importância e a excelência de filmes tão sublimes quanto "Estate Violenta" (1959), "La Ragazza Con La Valigia" (1961), "Cronaca Familiare" (1962), o derradeiro "Il Deserto Dei Tartari" (1976) - feliz adaptação do romance homónimo de Dino Buzzati - e, sobretudo, "La Prima Notte Di Quiete" (1972). Com efeito, raros foram os cineastas que conseguiram filmar planos tão belos e despojados, utilizando simultaneamente tão intensa e tocante carpintaria dramática para partilhar a cumplicidade dos pequenos gestos de amizade ou as relações, a emotividade e a desesperada poesia da solidão extrema de um par de protagonistas inadaptados, à procura de encontrar o seu lugar enquanto são arrastados - ou se deixam atrair - para o isolamento.
Há um bom par de anos que venho consolidando a ideia segundo a qual a qualidade média das gravações de música escrita e interpretada pelas mulheres é significativamente superior à dos seus pares masculinos. As provas mais convincentes vão-se semeando por aí, ano após ano, destacando-se os nomes de Annie Clarke/St.Vincent, Shara Worden/My Brightest Diamond, Regina Spektor, Neko Case, Alela Diane, Björk, PJ Harvey, Julia Holter, Laura Marling, Sharon Van Etten, Anna Meredith, Anna Calvi, Jesca Hoop, Nina Nastasia e as Goat Girl. Não sendo fácil, por seu turno, encontrar uma explicação para o sucedido, julgo que ela não andará muito longe da circunstância de as mulheres necessitarem de uma maior afirmação para se conseguirem impor num universo musical pop/rock predominantemente masculino, aparecendo apenas quando sentem que têm algo importante para dizer. O mais recente testemunho surge agora na voz de Anna Calvi. Corajoso manifesto feminista e queer, “Hunter”, num gesto mais urgente e imediato, liberta-se um pouco do universo cinemático mais elaborado dos discos anteriores, mantém a sedução da voz operática da cantora e explora o panorama sombrio das visões de David Lynch, pela via musical de Angelo Badalamenti, bem como a ambiguidade musical/sexual reconhecida em David Bowie. Tenso, eléctrico e linear, mas também elegante e intimista, “Hunter” é um magnífico objecto de desejo, belo e selvagem, representando um conjunto expressivo de ideias em vez de uma mera sucessão mais ou menos articulada de acordes, conforme pretendia justamente a sua autora.