a dignidade da diferença
16 de Março de 2016

 

andrei rubliov.jpg

 

Conclui-se hoje a retrospectiva integral da obra do cineasta Andrei Tarkovski, a cargo da Leopardo e da Medeia Filmes. A obra do fundamental autor russo ilustra bem a persistência de um cineasta na elaboração e desenvolvimento de um trabalho que procura uma compreensão para o sofrimento e a solidão do ser humano, mergulhando amiúde na questão do artista contra a autoridade, mas sobretudo nos problemas da crença e da falta dela, na espiritualidade e no sagrado – daí a censura progressiva do(s) regime(s) soviético(s), dificultando a exibição dos seus filmes. Os planos longos, a estilização da cor, os invulgares efeitos da luz, o simbolismo ou a intencional imobilidade narrativa configuram-se como características formais únicas e adequadas às obsessões e reflexões temáticas de um autor que nos resgata do peso excessivo do actual e dominador cinema exclusivamente de entretenimento, onde filmes tão memoráveis como Andrei Rubliov, Stalker ou Nostalgia se distinguem da irritante futilidade daquele. Também por esta razão, Tarkovski é indispensável. De tão funda inquietação nasce uma obra mais poética que narrativa, prodígio estético de um autor que sentia o cinema como uma oração.

 

Stalker

 

publicado por adignidadedadiferenca às 20:22 link do post
05 de Outubro de 2014

 

A Igreja Católica tem sido muito justamente acusada de não acompanhar a evolução da sociedade e as mudanças do seu modelo familiar. No seu discurso oficial sobre a homossexualidade, por exemplo, a instituição religiosa dá sinais preocupantes de incompreensão e condenação moral. A propósito de uma reportagem do semanário Expresso desta semana sobre o primeiro congresso mundial de homossexuais católicos em Portimão, percebe-se que hoje em dia, felizmente, existe uma minoria católica que vem contestando esta visão reaccionária da sociedade. Um dos exemplos mais notáveis é o de Frei Bento Domingues. O frade dominicano nem sempre está de acordo com o discurso oficial da Igreja, afastando-se amiúde das suas incoerências e imposições absurdas. Como agora, ao alertar para a necessidade de renovação do pensamento sobre esta matéria. A sua voz é a de alguém que pensa pela sua cabeça, própria de um espírito livre, incómodo e aberto à mudança. Escutem o que ele disse na referida reportagem: «Como é que se vai exigir a pessoas que não escolheram ser homossexuais e que têm impulsos, desejos e afectos que não o sejam? O importante é que as pessoas sejam “eticamente honestas” nas suas relações. Nem aos homossexuais vale tudo, nem aos heterossexuais vale tudo. O casamento entre homossexuais é um problema que tem de ser debatido na Igreja, não por ser pecado ou não mas porque havia um modelo de família e agora aparece outro (…) que nunca foi estudo nem reflectido. É um bom momento para ter essa discussão.» Uma lufada de ar fresco no discurso maioritariamente bafiento da Igreja Católica.

06 de Janeiro de 2012

 

 

Hoje revimos  Luz de Inverno, de Ingmar Bergman, o nosso filme preferido dele logo após o genial Persona. Tivemos a oportunidade de assistir à mais absoluta interpretação de Ingrid Thulin e, sobretudo, de rever uma cena da qual já não nos recordávamos: o diálogo assombroso estabelecido entre o pastor Tomas Eriksson (representado por Gunnar Björnstrand) e o sacristão Algot Frövik. Na perspectiva deste último – que padecia de uma prolongada e dolorosa deficiência física – é dado nos Evangelhos um ênfase excessivo ao sofrimento físico de Cristo (e, por experiência própria, sabia bem do que falava) quando comparado com o abandono a que foi votado pelos apóstolos (sem excepção) – um deles, Paulo, chegou até a contradizê-lo – e pelo Pai. Naquele momento, crivado pelas dúvidas que lhe surgiram sobre a veracidade do que andara a pregar, isto é, confrontando-se com o definitivo silêncio de Deus, insuportável para ele foi o sofrimento moral. Arrepiante e inesquecível. Exemplo supremo - mas não único - de um filme espantoso sobre a tragédia das relações humanas, o silêncio, a razão e o vazio.

 

Outra das sequências admiráveis do filme...

04 de Setembro de 2011

 

 

Eis uma pequena pérola, entre tantos outros belíssimos exemplos, do magnífico Nada a Temer, de Julian Barnes, autêntico e surpreendente manual de sobrevivência, a propósito do qual já aqui elogiámos merecidamente a ironia, a inteligência, a elegância e o modo descomplexado como nos ajuda a reflectir sobre a morte, através da meditação filosófica, religiosa ou literária:

Flaubert perguntou «É esplêndido ou é estúpido levar a vida a sério?» E disse que devíamos ter «a religião do desespero», ser «iguais ao nosso destino, isto é, impassíveis como ele». Ele sabia o que pensava sobre a morte: «O eu sobrevive? Dizer que sim parece-me um mero reflexo da nossa presunção e do nosso orgulho, um protesto contra a ordem eterna! A morte não deve ter mais segredos para nos revelar senão a vida.» Mas, mesmo não confiando nas religiões, sentia uma ternura pelo impulso espiritual e desconfiava do ateísmo militante. «Cada dogma em particular repugna-me», escreveu. «Mas considero que o sentimento que os engendrou é a expressão de humanidade mais natural e poética. Não gosto dos filósofos que o rejeitaram como disparate e intrujice. O que eu encontro nele é necessidade e instinto. Por isso respeito o homem negro que beija o fetiche e o católico que ajoelha ante o Sagrado Coração.»

publicado por adignidadedadiferenca às 14:17 link do post
11 de Setembro de 2010

 

 

O republicano Tomás da Fonseca defende que as aparições de Fátima foram um embuste onde a Igreja mais do que testemunha é acusada de cumplicidade e empenho activo. O autor apoia-se em documentos da época para validar a sua tese a que procura dar um cunho científico, comparando as aparições da Cova de Iria com outras anteriores. Tomás da Fonseca, polémico e anticlerical, denuncia e responsabiliza altos dignitários da Igreja pelo logro, o qual resulta, segundo o próprio, do cínico aproveitamento ideológico e religioso para moldar o pensamento dos incautos.

A audácia e a notável liberdade de raciocínio, o carácter provocatório da escrita e o espírito subversivo do escritor contribuíram, a meu ver injustamente, para o esquecimento desta obra singular e merecedora de muito mais atenção. Pela minha parte, luto contra a perda de memória. A Antígona, muito antes, pensou o mesmo e reeditou recentemente «Na Cova dos Leões», com prefácio do historiador Luís Reis Torgal. A foto que junto refere-se, contudo, à capa da edição de 1958 por ser esta a que possuo. Termino por recomendar, a propósito, a obra «Fátima Nunca Existiu» do Padre Mário de Oliveira, um homem de fé cristã católica.

 

02 de Maio de 2010

 

Para quem pensava que o problema da Igreja era só a pedofilia, aqui vai mais uma acha para a fogueira, retirada do semanário Expresso, de cuja notícia deixo um breve, mas significativo, resumo.

 

«Dentro das malas [com o arquivo completo das finanças do Vaticano e, em especial, do Instituto das Obras Religiosas (IOR)] estava o arquivo pessoal de monsenhor Renato Dardozzi. A sua especialidade era evitar que assuntos financeiros degenerassem em escândalos. Sob o título Vaticano, S.A., Gianluigi Nuzzi reconstitui num livro parte do que aconteceu entre 1980 e 2000. A revelação mais importante é que foi constituído um IOR paralelo que chegou a movimentar € 270 milhões. A rede paralela terá sido criada por monsenhor Donato de Bonis, já falecido, prelado do Banco. Os documentos do arquivo incluem cartas do presidente do IOR, Angelo Caloia, dirigidas ao Papa ou ao secretário de Estado, alertando para as ilegalidades que ia descobrindo. Numa delas afirma que os títulos emitidos pelo IOR reflectem pagamentos ilegais a políticos, com montantes que depois lhe foram devolvidos limpos. A partir do arquivo e de outras fontes, Nuzzi reconstitui a existência, no IOR, de contas bancárias de Vito Ciancimino, o já falecido presidente da Câmara de Palermo, condenado pelas suas ligações à Cosa Nostra. As cartas do alarmado presidente do banco do Papa referem os nomes insólitos dos titulares das contas pelas quais passava dinheiro sujo: Mamã de Bonis, Luta contra a leucemia, Missas, Meninos pobres, Manicómios».

Ler também aqui.

 

publicado por adignidadedadiferenca às 02:07 link do post
08 de Março de 2009

 

Eis mais um magnífico livro que se debruça sobre as preocupações ambientais, cujo autor, Edward O. Wilson, é um dos mais reputados biólogos contemporâneos.

E. O. Wilson defende que a solução para alguns dos maiores problemas do planeta virá da união entre ciência e religião. Embora entendam o mundo de forma diferente e tenham uma visão contrária acerca do nascimento e da evolução das espécies, o autor apela para a junção destas duas forças em busca de um objectivo que deve ser de todos: viver em harmonia com a natureza, pondo de parte as suas diferenças, pouco relevantes face ao perigo que espreita o mundo real.

Numa linguagem fascinante e clara que se transforma, para os seus leitores, num autêntico farol, o biólogo descreve-nos uma cativante visita guiada por alguém que é um profundo conhecedor dos temas, rumo a uma melhor compreensão do mundo e dos seres vivos, e da relação que existe entre eles, alertando-nos para o perigo que ameaça o futuro do planeta.

A poluição, o aquecimento global ou o declínio da diversidade biológica devem ser preocupações comuns, que só o respeito mútuo poderá ultrapassar.

A obra chama-se The Creation: An Appeal to Save Life on Earth e foi publicada pela Gradiva – na colecção Ciência Aberta - em Novembro de 2007, com o título A Criação, Um Apelo para Salvar a Vida na Terra. A tradução é de Maria Adelaide Ferreira.

Para terminar, deixo-vos com um pequeno excerto do primeiro capítulo, onde o autor mostra, de forma brilhante, ao que vem.

 

 

Carta a um pastor baptista sulista: saudação

 

Caro pastor: Nunca nos encontrámos e no entanto sinto que o conheço suficientemente bem para lhe chamar amigo. Antes de mais, crescemos na mesma fé. Quando rapaz, também eu respondi ao apelo do altar; fui imerso na água baptismal. Embora já não pertença a essa fé, estou certo de que, se nos encontrássemos e falássemos em privado sobre as nossas crenças mais profundas, o faríamos num espírito de respeito mútuo e de boa vontade. Sei que partilhamos muitos dos preceitos da conduta moral. Talvez também importe o facto de sermos ambos americanos e, na medida em que tal possa ainda afectar a civilidade e as boas maneiras, sermos ambos sulistas.

Escrevo-lhe agora para lhe pedir conselho e ajuda. Claro que, ao fazê-lo, não vejo forma de evitar as diferenças fundamentais nas nossas respectivas visões do mundo. O pastor é um intérprete literal da Escritura Sagrada cristã. Rejeita a conclusão alcançada pela ciência de que a humanidade evoluiu a partir de formas inferiores de vida. Acredita que a alma de cada pessoa é imortal, fazendo deste planeta uma plataforma de transição para uma segunda vida, eterna. A salvação está assegurada para aqueles que se redimem em Cristo.

Eu sou um humanista secular. Penso que a existência é aquilo que dela fazemos enquanto indivíduos. Não existe qualquer garantia de uma vida depois da morte e o Céu e o Inferno são aquilo que criamos para nós próprios, neste planeta. Não existe nenhum outro lar. A humanidade teve origem aqui, por evolução a partir de formas inferiores de vida, ao longo de milhões de anos. E sim, vou dizê-lo claramente, os nossos antepassados eram animais parecidos com macacos. A espécie humana adaptou-se, física e mentalmente, à vida na Terra e a nenhum outro lugar. A ética é o código de conduta que partilhamos com base na razão, na lei, na honra e num sentido inato de decência, mesmo que alguns o atribuam à vontade de Deus.

 

Para si, a glória de uma divindade invisível; para mim, a glória de um universo finalmente revelado. Para si, a crença num Deus transformado em carne para salvar a humanidade; para mim, a crença no fogo de Prometeu, roubado para libertar os homens. O pastor encontrou a sua verdade absoluta; eu continuo à procura. Eu posso estar enganado, o pastor pode estar enganado. Podemos ambos estar parcialmente certos.

Será que esta diferença entre as nossas visões do mundo nos separa em todos os aspectos? Não. O pastor e eu e qualquer outro ser humano lutamos pelos mesmos imperativos de segurança, liberdade de escolha, dignidade pessoal e por uma causa em que acreditar que seja maior do que nós próprios.

Vejamos então se podemos, e se o pastor está disposto a isso, encontrar-nos no lado próximo da metafísica, de forma a lidarmos com o mundo real que partilhamos. Expresso-me assim porque o pastor tem o poder de ajudar a resolver um enorme problema, que é uma grande preocupação para mim. Espero que tenha a mesma preocupação. Sugiro que ponhamos de lado as nossas divergências de forma a salvarmos a criação. A defesa da natureza viva é um valor universal. Não resulta de nenhum dogma religioso ou ideológico, nem o promove. Ao invés, serve, sem discriminação, os interesses de toda a humanidade.

 

publicado por adignidadedadiferenca às 23:34 link do post
14 de Maio de 2008

Porque se chama asssim o meu blog

 

A dignidade da diferença, como evitar o choque das civilizações (editado pela Gradiva em Maio de 2006) - Jonathan Sacks

 

 

 

 

A propósito de uma polémica surgida aqui deixei a promessa de aconselhar o livro onde fui (literalmente) roubar o título para o meu blog.

 

Trata-se de um livro soberbo, cuja matéria de que trata muitos irão considerar demasiado utópica e, por isso, irrealizável, mas que me marcou pessoalmente e, embora não sinta necessidade de acreditar na existência de Deus para dar um sentido à minha vida, ainda hoje, me deixou marcas profundas.

 

Escrito pelo filósofo e teólogo Jonathan Sacks - que é também Rabino-Chefe das Congregações Hebraicas Unidas do Commonwealth, é o exemplo mais esperançoso que encontrei até hoje para a possibilidade de uma vida comum entre diferentes civilizações, principalmente pela resposta que o autor pretende dar ao perigo real para a humanidade que consiste em autênticos actos de terror, motivados, principalmente, pela religião.

 

E para fazer a síntese, nada melhor que utilizar as palavras do autor que surgem na contracapa da edição portuguesa:

 

 

 

 

«O maior antídoto para a violência é o diálogo: deixar falar os nossos medos, escutar os medos dos outros e, nessa partilha de vulnerabilidades, descobrir a génese da esperança.

Será que sabemos ouvir a voz de Deus numa voz, sensibilidade e cultura que não as nossas? Será que sabemos ver a presença de Deus no rosto de um estrangeiro?

A diferença não limita: alarga a esfera das possibilidades humanas... Só quando nos dermos conta do perigo que é desejar que todos sejam iguais - a mesma fé, por um lado, e o mesmo McWorld, por outro - poderemos evitar o choque das civilizações resultante de um sentimento de ameaça e medo. Aprenderemos a viver com a diversidade quando compreendermos que a dignidade da diferença é uma dádiva de Deus que enaltece o mundo.»

 

Dispensando a presença de Deus, acredito que possamos aprender a viver com a diversidade se compreendermos que a dignidade da diferença pode ser uma dádiva dos homens.

 

Mais um guia a seguir para o tempo que ainda me resta viver.

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