a dignidade da diferença
18 de Junho de 2017

 

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Do ciclo dedicado a Kenji Mizoguchi que, desde Abril, tem decorrido no Espaço Nimas, O Conto dos Crisântemos Tardios, de 1939, é a excepção ao conjunto de filmes situados na derradeira fase da sua obra e, excluindo A Senhora Oyu, após a sua consagração no ocidente, quando se impôs definitivamente com A Vida de O´Haru. História do amor trágico de uma mulher por um actor de teatro por quem tudo sacrifica, o qual, para vencer o lado opressivo do pai, tem de abandonar a sua classe social e encontrar outra mãe, a jovem criada que o ama e acompanha, O Conto dos Crisântemos Tardios celebra como nenhum outro o plano-sequência. Se uma das características essenciais da arte de Mizoguchi, a utilização da elipse figurativa, já fora superiormente ilustrada no magnífico embora pouco valorizado Oyuki, A Virgem, de 1935, é nos Crisântemos que o plano-sequência emerge e assume uma importância capital na arte do cineasta japonês. Esta técnica, que Mizoguchi - acreditando no seu próprio testemunho - terá iniciado em 1936, consiste na manutenção do mesmo enquadramento durante toda uma sequência, permanecendo a câmara a uma certa distância, evitando que o autor se envolva excessivamente nos dramas dos protagonistas. Para cada cena, um plano (one scene one cut). Entenda-se, Mizoguchi não utilizou este recurso estilístico como mero exercício ou figura de estilo, antes chegando a ele por necessidade de exprimir com mais precisão os momentos de maior intensidade ou tensão psicológica, desvalorizando o método clássico da utilização de grandes planos gratuitos ou de efeito unicamente estético. Com efeito, essa opção pelo plano-sequência resulta da necessidade de superar os dois principais problemas criados por Shotaro Hanayagi, o actor escolhido para o papel do protagonista. Por um lado, tornar credível a representação do papel de um jovem por um actor próximo dos 50 anos e, por outro, superar as evidentes dificuldades advindas da sua inexperiência de cinema, perdendo-se em takes curtos, interrompendo o texto com frequência. Num filme sobre o teatro, essa opção pelo plano-sequência não resulta de uma preocupação com o realismo, mas antes com um acentuado efeito de representação próprio da teatralidade que se pretende exibir. E se o plano-sequência sobressai como marca indelével do autor, existem neste filme, no entanto, outros predicados igualmente admiráveis, entre os quais se destacam a construção e divisão dos espaços como meio de manifestar visualmente a separação social das personagens e uma relação socialmente condenada, bem como o contraponto entre a agonia da personagem feminina e o desfile triunfal do actor. Da conjugação destas características, da configuração do espaço e da distância certa (ou emocionalmente justa) da câmara, pode concluir-se que opera no filme uma discreta sensualidade, onde cada personagem tem o seu lugar bem definido no espaço, clarificando exemplarmente a sua relação psicológica e social com as restantes.

publicado por adignidadedadiferenca às 13:05 link do post
29 de Maio de 2017

 

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Enquanto, por cá, prossegue o ciclo dedicado a Kenji Mizoguchi, com uma sucessão de planos-sequência (imagem de marca do autor) e alguns dos mais belos movimentos de câmara da história do cinema (com essa rara capacidade para esculpir uma cena), Andrei Tarkovsky, outro cineasta superlativo - a quem apenas encaixará a acusação de falta de sentido de humor - parece estar também na ordem do dia. Com efeito, por um lado, Ryuichi Sakamoto elabora, programa e arruma o seu mais recente e notável "async" como uma banda-sonora para um filme imaginário do cineasta russo, inspirando-se, no caso vertente, em imagens conhecidas de alguns dos seus filmes, rumo a uma música que, abastecendo-se num matizado caldeirão de cultura, tradição, vanguarda e experimentalismo, vai progressivamente eliminando as suas fronteiras, tornando-se transparente e, por vezes, ausente, sempre difícil de catalogar. Por outro lado, chegou agora a vez do Tarkovsky Quartet incluir nas suas gravações - que compõem as belíssimas e rarefeitas peças musicais de "Nuit Blanche" – sucintas alusões ao pensamento e à estética austera do cineasta russo, cuja música (onde se descobrem amiúde traços característicos da escrita de Nino Rota ou Tomasz Stanko) esboça e acompanha vagamente alguns dos sonhos, inquietações e profecias de Tarkovsky.

 

 

publicado por adignidadedadiferenca às 00:23 link do post
29 de Outubro de 2015

 

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Talvez o leitor nunca tenha ouvido falar. Pouco conhecido no ocidente, Mikio Naruse (1905-1969) foi um dos mais férteis e importantes cineastas japoneses do século vinte, assinando um número considerável de filmes (aproximadamente noventa obras). Na realidade, tal como sucedeu com Yasujiro Ozu, o cinema de Naruse acompanhou as transformações da sociedade japonesa do pós-guerra, nas quais a mulher teve um papel fundamental - Naruse, tal como outro mestre japonês, o enorme Kenji Mizoguchi, é um dos grandes cineastas de mulheres. Com efeito, a importância do cineasta japonês mede-se pela invejável mestria com que retratou o conflito entre tradição e modernidade, pelo modo como as suas obras ilustram o clima de tensão que se vivia quase diariamente nas cidades, no seio de cada família. Mikio Naruse trabalhou essa transição cultural no plano do conflito de valores entre gerações e, no centro dos pequenos e íntimos dramas familiares, interessou-se pelos problemas entre homens e mulheres, pelas crises conjugais. A sua visão era acentuadamente sombria e melancólica.

 

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Nos seus filmes as personagens aceitam as coisas tal como elas são, inevitáveis. Os dias, tristes, vão passando lentamente. Contudo, os monólogos desapaixonados desse conjunto de personagens são incapazes, paradoxalmente, de ocultar os pequenos sobressaltos que inquietam o seu (e o nosso) interior. E se já realcei a importância do cinema de Naruse, falta identificar-lhe o estilo. Os alicerces do edifício estético do autor japonês - os contidos movimentos de câmara, os diálogos e cenários minimais, os desempenhos rigorosos – operam numa lógica de contenção realista e encaixam naturalmente na quase imobilidade de um ritmo austero e elementar, no qual prevalece, como acertadamente referiu Pedro Mexia, uma sucessão de acontecimentos microscópicos que, embora não desenvolvam a narrativa, anunciam, numa configuração palpável e vibrante, estados de espírito. Como acontece nos melhores exemplos, já não se trata propriamente de figuras de estilos, mas de um modo genérico de expressão. Um cinema onde predominam seres humanos comuns e imperfeitos, e que representa uma imagem sólida e individualizada do papel fundamental da mulher num mundo em transfiguração.

 

publicado por adignidadedadiferenca às 21:06 link do post
07 de Outubro de 2013

 

 

Jacques Rancière, um dos mais estimulantes pensadores contemporâneos no domínio da filosofia, da história ou da política, manteve uma relação muito próxima com o cinema. Afastando-se do papel de filósofo ou de crítico, é enquanto amante da sétima arte que decide escrever Os Intervalos do Cinema, uma abordagem assaz singular à sua relação com o objeto cinematográfico, definindo-a como um conjunto de «encontros e intervalos entre cinema e arte, entre cinema e política, e entre cinema e teoria». Quando escreve sobre cinema, Rancière exibe a sua vocação, os seus modelos narrativos, a sua relação com a literatura e as suas ambiguidades ou contradições, recorrendo sistematicamente à riqueza e à diversidade dos universos estéticos de autores maiores como Godard, Hitchcock, Rossellini, Minnelli, Vertov, Pedro Costa, Bresson ou Straub (e Huillet). Merece a pena destacar, a título meramente exemplificativo, uma curtíssima passagem da sua prosa, a qual resume bem a relação entre o cinema e a política, assim como a função de cada um deles:

 

 

«O cinema não apresenta um mundo que outros teriam de transformar. Faz, à sua maneira, a conjunção do mutismo dos factos e do encadeamento das acções, da razão do visível e da sua simples identidade ensimesmada. É à política, nos seus próprios cenários, que cabe construir a eficácia política das formas da arte. O mesmo cinema que proclama, em nome dos revoltados, “O amanhã pertence-nos”, assinala também que não pode oferecer outros amanhãs senão estes que são os seus. É isto que Mizoguchi nos mostra num outro filme, O Intendente Sansho, que conta a história da família de um governador de província afastado do seu cargo devido à sua solicitude para com os camponeses oprimidos. A sua mulher é raptada e os seus filhos vendidos como escravos para trabalharem numa mina. Para que o seu filho Zushio possa escapar, a fim de ir ter com a mãe ao cativeiro e cumprir a palavra dada libertando os escravos, a irmã de Zushio, Anju, afunda-se lentamente nas águas de um lago. Mas este cumprimento da lógica da acção é também a sua bifurcação. Por um lado, o cinema participa no combate pela emancipação, por outro, dissipa-se em círculos na superfície de um lago. É esta dupla lógica que Zushio irá por sua vez retomar, ao demitir-se das suas funções, uma vez libertados os escravos, para ir ter com a mãe, cega, na sua ilha. Todos os intervalos do cinema podem resumir-se no movimento pelo qual o filme que acaba de encenar o grande combate pela liberdade nos diz, num derradeiro plano panorâmico: - Eis os limites do que eu posso. O resto pertence-vos.»

Jacques Rancière, Os Intervalos do Cinema (tradução: Luís Lima), Ed. Orfeu Negro.

  

25 de Dezembro de 2011

 

A nossa lista dos filmes mais marcantes que foram exibidos ao longo do ano não é, para manter a tradição, muito extensa (bem pelo contrário). Não só porque a qualidade média daqueles esteve longe de nos surpreender, mas ainda por força do escasso tempo disponível para assistir às diversas estreias cinematográficas. Dois factores que, em conjunto, contribuíram decisivamente para esta escolha francamente reduzida. Como forma de ultrapassar esta pequena insuficiência achámos por bem juntar à nossa lista um conjunto de obras-primas que mereceram a sua primeira edição nacional em DVD, cuja excelência da mise-en-scène merece obviamente figurar nesta e em quaisquer outras listas que se venham a elaborar sobre os melhores filmes do ano, da década ou do século. Razão pois então para aqui deixarmos, no total, dez filmes e mais um, Faust, cuja estreia nacional aguardamos ansiosamente dado o carácter singular e o talento genial do seu autor, Alexander Sokurov. E não vamos embora sem referir que, contra a opinião quase generalizada, não ficámos deslumbrados com a mais recente obra de João Canijo, o hipervalorizado Sangue do Meu Sangue, cujas mise-en-scène (forçada em demasia) e visão estética do realizador perdem ingloriamente quando comparados com o excelso trabalho dos admiráveis actores.

 

Woody Allen, Meia-Noite em Paris

 

David Cronenberg, Um Método Perigoso

 

 Monte Hellman, Road to Nowhere

 

Charles Laughton, A Sombra do Caçador (DVD)

 

Kenji Mizoguchi, Os Amantes Crucificados (DVD)

 

 Kenji Mizoguchi, Os Contos da Lua Vaga (DVD)

 

Nanni Moretti, Habemus Papam

 

 Alexander Sokurov, Faust

 

Andrei Ujică, Autobiografia de Nicolae Ceauşescu 

 

Luchino Visconti, Senso (DVD)

 

Frederick Wiseman, Crazy Horse 

07 de Junho de 2011

 

«Mizoguchi está para o cinema como Bach para a música, Shakespeare para a literatura e Tiziano para a pintura. É o maior», Jean Douchet

 

Os Contos da Lua Vaga

 

Surge, por fim, com distribuição da Monroe Stahr, a oportunidade de ver (e de guardar religiosamente), em edição nacional, dois dos mais belos e extraordinários filmes do genial cineasta japonês, Kenji Mizoguchi - em cópias restauradas e, sobretudo a de Os Amantes Crucificados, num estado imaculado. Trata-se dos celebérrimos e míticos Ugetsu Monogatari (Os Contos da Lua Vaga), de 1953, e Chikamatsu Monogatari (Os Amantes Crucificados), de 1954, assinados depois de fundada a glória ocidental quando os europeus abriram os olhos para o cinema de Mizoguchi durante a apresentação de Saikaku Ichidai Onna (A Vida de O’ Haru), no Festival de Veneza de 1952, a quem foi atribuído o Leão de Prata - que Os Contos da Lua Vaga e  Sanshô Dayú (O Intendente Sansho) conquistaram sucessivamente -, após o sucesso imediatamente anterior de outro japonês: Akira Kurosawa (com Rashomon, As Portas do Inferno).

 

 

Os Amantes Crucificados

 

Mizoguchi assina ambos os filmes num período em que já domina na perfeição a sua suprema e inesgotável arte pictórica e narrativa como, por exemplo, o uso assombroso e preciso do plano-sequência para evidenciar os instantes de intensa densidade psicológica, a maestria dos travellings, as admiráveis elipses figurativas, a dimensão sobrenatural, ou os lentíssimos e admiráveis movimentos de câmara envoltos numa sublime poesia visual. E temos ainda a compaixão e a dimensão trágica dos personagens, o sentido estético e a fulgurante capacidade para pintar autênticos quadros nas sequências que filma (a luz de Vermeer e Rembrandt, as cores de Tiziano, o renascimento…), a melódica e harmónica estrutura arquitectónica, ou o imenso amor que o cineasta nutre pelas mulheres traduzido na exemplar expressão da sua complexidade psicológica, moral e social. E fiquemos por aqui para evitar que nos estendamos indefinidamente. O cinema de Mizoguchi, mesmo após a passagem de todos estes anos, continua a ser um bálsamo para os sentidos.

05 de Agosto de 2008

Aproveitando o magnífico catálogo apresentado pela Fundação Calouste Gulbenkian - Serviço de Belas-Artes, com o apoio da Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema, escrito e elaborado por João Bénard da Costa a propósito do ciclo que passou entre Novembro de 2006 e Fevereiro de 2007 no Grande Auditório da Fundação, que recebeu o título «Como o cinema era belo» vou recordar alguns dos meus filmes favoritos de sempre. Alguns coincidem com a escolha feita pelo autor do catálogo e responsável pelo ciclo, outros são apenas preferências minhas.

Vou-me limitar a reproduzir fotografias desses belíssimos filmes, sem o apoio de qualquer texto ou opinião pessoal. Apenas uma singela homenagem ao cinema. De ontem e de hoje.

 

Sanshô Dayú (O intendente Sansho) - Kenji Mizoguchi

Citizen Kane - Orson Welles

Jean Seberg nas filmagens de Lilith - Robert Rossen

The searchers (A desaparecida) - John ford

Chikamatsu Monogatari (Os amantes crucificados) - Kenji Mizoguchi

27 de Abril de 2008

 

Sansho Dayu (O intendente Sansho) - Kenji Mizoguchi (1954)

 

Refiro-me à cena do suicídio de Anju, que, certeiramente,  João Bénard da Costa considera ser o momento mais sublime da arte modulatória do cineasta, cuja luz irreal que vemos no campo de flores, o conhecido crítico apenas encontra comparação com a do quadro de Tiziano «A apresentação de Maria ao templo».

 

 

 

 

 

Inesquecível, de resto, todo o filme mais a prodigiosa música que Fumio Hayasaka para ele compôs e cuja BSO, suponho, não deverá existir em suporte digital.

 

 

 

E, já agora, quando terá o DVD edição portuguesa?

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